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Cabe chamar de fascismo os ataques feitos a Lula durante sua caravana?

Protesto contra o fascismo em São Paulo ocorrido em março - Gabriel Henrique/Futura Press/Estadão Conteúdo
Protesto contra o fascismo em São Paulo ocorrido em março Imagem: Gabriel Henrique/Futura Press/Estadão Conteúdo

Lucas Borges Teixeira

Colaboração para o UOL, em São Paulo

29/03/2018 04h00Atualizada em 29/03/2018 14h20

Após os ataques feitos durante a caravana do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pelo Sul do Brasil, o termo "fascismo" ganhou as redes sociais e discussões políticas.

Diferentes grupos também têm acusado seus opositores de serem nazistas ou cometerem atitudes fascistas. O ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes chegou a usar o termo "pós-conceito absurdo" para retratar a situação. "Se você quer aplicar a lei, quer fazer justiça, você no mínimo é chamado de fascista", afirmou em palestra no último dia 15.

Lula usou o termo algumas vezes durante a caravana, principalmente após dois ônibus de sua comitiva terem sido atingidos por quatro tiros enquanto passavam pelo Paraná

O ato criminoso rapidamente suscitou reações nas redes sociais, incluindo um tuitaço na quarta-feira (28) com a hashtag #AtentadoContraADemocracia. Em meio às mensagens, a palavra "fascista" foi uma das que mais se destacaram.

Para especialistas, o termo está sendo banalizado e usado de forma imprópria, sem levar em conta seu conceito histórico. Contudo, certas atitudes desses grupos têm, sim, se aproximado de características do movimento que tomou parte da Europa no século passado.

Nem tudo é fascismo

Saudação fascista - Arquivo/Getty Images - Arquivo/Getty Images
O ditador italiano Benito Mussolini faz a saudação fascista
Imagem: Arquivo/Getty Images

"Poucas palavras históricas se tornaram tão comuns na boca das pessoas como fascismo. Hoje, vê-se ela sendo usada muito de forma política, sem abraçar exatamente seu conceito histórico", afirma o professor Frederico Alexandre Hecker, Ph.D. em história pela Universidade de Milão, na Itália.

"O termo virou um xingamento, né? Como todos, ele é muito pouco explícito. Nem tudo é fascismo."

O professor Francisco Martinho, do Departamento de História da USP (Universidade de São Paulo), concorda. "Toda banalização é perigosa. O fascismo é um fenômeno específico, de molde nacionalista e mobilizador", disse em entrevista para o portal da faculdade na semana passada. "Qualquer adjetivação que defina o adversário como fascista sem apreciação mais aprofundada de seus valores e formas de atuação pode ter efeito político imediato. Mas de nada serve para sua compreensão."

“As pessoas não sabem o que é fascismo e costumam confundir com direita ou conservadorismo, mas são coisas completamente diferentes”, afirma Nelson Gonçalves Gomes, professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB) e doutor em filosofia pela Universidade de Munique, na Alemanha. “A Inglaterra, por exemplo, tem o Partido Conservador há quase 200 anos e não são fascistas. Há diversos tipos de direita, com diferentes lideranças que não estão ligadas à ideologia fascista.”

Ficar só no xingamento é ser fascista, assim como partir para a violência e fugir do debate. Fazer isso é pegar toda a história que construímos e jogar no lixo

Frederico Alexandre Hecker, professor de história

Nos casos mais recentes no Brasil, Hecker explica que, embora não venham de "fascistas de carteirinha", certas atitudes têm características que se aproximam do conceito clássico do fascismo, encabeçado por Benito Mussolini na Itália nos anos 1920. Ainda assim, ele alerta que ofensas do tipo podem vir de "qualquer lado".

"Na democracia, as pessoas debatem, desafiam-se com ideias e buscam o convencimento por meio da lógica. Já no fascismo, os outros são inimigos, não adversários. Quando vemos ataques como estes sofridos pela caravana do Lula, podemos dizer que se aproximam dele", afirma o professor. "Afinal, o inimigo você mata."

“Desde o começo, na Itália, os fascistas usavam a violência como algo legítimo. Hoje, é basicamente o que significa para as pessoas: ter uma atitude violenta”, afirma Gomes. “Estão usando pedras e outras coisas, não cassetetes como os italianos, mas esta é a única conexão com o fascismo histórico.”

Hitler e Mussolini - AP - AP
Adolf Hitler (à esq.), da Alemanha, e Benito Mussolini, da Itália, lutaram lado a lado na Segunda Guerra Mundial
Imagem: AP

"Por outro lado, os próprios defensores do Lula também se aproximam de atitudes fascistas quando ignoram a estrutura jurídica-política brasileira. Ela é legítima, há um processo de direito do Estado democrático. Falar que é só conspiração também pode ser reconhecido como uma atitude do fascismo antigo", completa Hecker.

Mas o que é o fascismo, afinal?

Considera-se  que o movimento fascista nasceu na Itália em março de 1919, quando Benito Mussolini fundou o Grupo Italiano de Combatentes (Fasci italiani di combattimento), uma organização paramilitar de cunho nacionalista que unia em especial ex-combatentes da Primeira Guerra Mundial, homens desempregados e jovens.

O grupo mais tarde viraria o Partido Nacional Fascista (PNF) e seria responsável pelo golpe de Estado realizado em outubro de 1922, a chamada Marcha sobre Roma, que levou Mussolini ao poder na Itália, onde ficaria por 21 anos.

De acordo com o sociólogo norte-americano Michael Mann, há cinco características fundamentais a todos os regimes fascistas do século 20 e seus apoiadores: o nacionalismo (patriotismo), o estatismo (Estado forte e soberano), a transcendência (misticismo quanto ao discurso do líder), os expurgos (uso de violência e não da razão) e o paramilitarismo (Exército operante e influente).

Em sua obra "Fascistas", publicada no Brasil em 2006, Mann explica que não só o regime de Mussolini, como o Terceiro Reich, fundado por Adolf Hitler, na Alemanha, e outros que ganharam força na Europa no século passado, usavam discursos autoritários, antiliberais e protecionistas para ganharem apoiadores em um continente devastado pela guerra e pela crise econômica.

"O fascismo foi em certa medida uma reação à crise do capitalismo, mas propunha uma solução revolucionária e supostamente viável", afirma Mann.

Essa solução seria impedir as "ameaças externas", geralmente imigrantes e comunistas da recém-formada União Soviética, e fazer com que as nações retornassem ao seu auge. Propostas deste tipo, mesmo sem apresentarem um plano real, eram muito comuns nos discursos de Hitler e Mussolini.

Canecas - Reprodução/Der Spiegel - Reprodução/Der Spiegel
Canecas com o rosto do ditador Benito Mussolini são vendidas na Itália
Imagem: Reprodução/Der Spiegel

"A clientela de base da sustentação fascista só pode ser entendida levando-se a sério suas aspirações de transcendência, pois eram absolutamente sinceros a esse respeito", diz Mann. "Era o elemento mais forte, em termos ideológicos, de seu apelo, oferecendo um horizonte plausível e viável de movimento em prol de uma sociedade melhor."

Neste contexto, Hecker vê outra aproximação com o Brasil de hoje. Segundo o professor, há muito "misticismo" no atual debate político e pouco uso da razão. "Lembra aqueles discursos de Hitler em que a massa ficava entregue?  Era algo quase religioso --e isso é ruim porque significa que não há raciocínio", argumenta o professor. "O fascista aceita essa aura mística e fica contra a razão, contra os argumentos. E temos visto umas pitadas disso por aí."

Pode haver fascismo no século 21?

Embora haja traços que possam ser considerados semelhantes entre a Europa do início do século 20 e o Brasil de hoje, como crise política e econômica e uma taxa relevante de desemprego, isso está apenas na superfície. De acordo com Mann, o fascismo é um movimento do século passado e só poderia ter acontecido nele. Ou seja, tentar implantá-lo agora seria anacrônico e improvável.

"Alguns movimentos podem ser mais ou menos fascistas [atualmente]. Mas é improvável que venham a se denominar fascistas movimentos comparáveis que surjam no futuro", afirma o sociólogo. "Na linguagem contemporânea, a palavra é usada sobretudo no xingamento ‘fascista!’, invectiva vaga contra aqueles de que não gostamos."

Para Gomes, hoje o fascismo não é mais um conceito identificável. “Este temor [do crescimento no Brasil] é fruto deste conceito difuso que o termo assumiu”, concorda o professor. “A confusão entre significados leva as pessoas a terem medo do fascismo quando o que está crescendo são pequenos grupos violentos e outros de extrema direita, mas não os fascistas.”

Hecker, por outro lado, diz crer que é sempre importante ficar atento. "O mundo muda e as coisas vão se alterando com o tempo. Já faz cem anos que Mussolini subiu ao poder, é muita coisa", raciocina o professor. "Então não podemos esperar que surjam grupos e pessoas fascistas neste molde, mas eles podem, sim, aparecer sob nova roupagem, sem ou com algumas das características originais."

"Ficar só no xingamento é ser fascista, assim como partir para a violência e fugir do debate. Fazer isso é pegar toda a história que construímos e jogar no lixo. Aí mora o fascismo", conclui Hecker.