Empresa de Singapura citada na CPI tem ligação com laboratório da Covaxin
A CPI da Covid no Senado apresentou documentos de compra da vacina indiana Covaxin no nome de uma empresa até então desconhecida no Brasil, a Madison Biotech. Os documentos chamaram atenção porque a empresa, com sede em Singapura, não firmou nenhum contrato com o governo brasileiro. O senador Randolfe Rodrigues (Rede) declarou que há suspeita de que a empresa seja de fachada e pretende pedir quebra de sigilo fiscal. Singapura é conhecida internacionalmente por ser um paraíso fiscal.
O UOL acessou o registro comercial da empresa no órgão regulador das entidades empresariais de Singapura. Segundo os documentos, a Madison Biotech tem ligações com a farmacêutica indiana que fabrica a vacina Covaxin, a Bharat Biotech.
Três pessoas constam como diretores da Madison Biotech. Um deles é Krishna Murthy Ella, fundador e presidente da Bharat Biotech, que estudou na Universidade de Wisconsin-Madison. Outro é Raches Ella, também da Bharat Biotech, que liderou o estudo clínico da Covaxin e está conduzindo pesquisas para uma nova vacina, a Coroflu, em colaboração com a universidade americana. O terceiro é um cidadão de Singapura.
A Madison Biotech foi criada em 14 de fevereiro de 2020 —naquela altura, a pandemia ainda estava concentrada na China. Com capital de 1.000 dólares de Singapura —menos de R$ 4.000—, tem como atividade principal a "venda por atacado de produtos médicos e farmacêuticos". O único sócio que consta na ficha comercial da empresa é um laboratório veterinário indiano, também de propriedade do fundador da Bharat Biotech.
Além de ter relação com a venda da Covaxin ao Brasil, a Madison Biotech foi contratada pelo governo do Paraguai para fornecer dois milhões de doses da vacina, em abril deste ano.
"Não é ilegal usar paraísos fiscais. A grande questão do paraíso fiscal é que, além de não tributar ou tributar muito pouco, permite muito sigilo fiscal. Isso pode tanto favorecer mecanismos de abuso fiscal como corrupção", afirma Grazielle David, doutouranda em economia na Unicamp (Universidade de Campinas) e coordenadora de política e campanha na organização Global Alliance for Tax Justice.
"No caso da Madison Biotech, a instalação em Singapura e as relações indiretas com a Bharat Biotech merecem ser investigadas tanto no Brasil quanto na Índia", continua David.
Questionada pelo UOL, a Bharat Biotech não respondeu sobre as relações com a Madison Biotech.
Relações intermediadas
A Covaxin foi a única vacina contra covid-19 que o Brasil não comprou direto do próprio laboratório.
Em 12 de janeiro deste ano, a Bharat Biontech anunciou parceria com a brasileira Precisa Medicamentos, cujos sócios são investigados em outro contrato com o Ministério da Saúde. Pouco depois, em 25 de fevereiro, o governo brasileiro e a Precisa Medicamentos assinaram contrato de compra e venda de 20 milhões de doses da Covaxin, antes mesmo de aprovação da vacina pela Anvisa.
"A parceria da Bharat Biotech com a Precisa Medicamentos envolve apoio para envio de documentação regulatória, aprovações e licenciamento para a Covaxin. Além disso, a Precisa Medicamentos vai conduzir uma grande pesquisa clínica de fase III (a última etapa de pesquisa no desenvolvimento de uma vacina) no Brasil, o que está planejado para começar no quarto bimestre de 2021", informou a Bharat Biotech, por nota.
Além do fato dos sócios da Precisa Medicamentos serem investigados e da rapidez na assinatura do contrato, chama a atenção o preço negociado para cada dose da Covaxin: US$ 15. É o valor mais alto oferecido pelo Brasil entre todos os contratos de aquisição de imunizante contra a covid-19. A vacina da Pfizer, por exemplo, foi comprada pelo Brasil por US$ 10. Já a Coronavac, produzida pelo Instituto Butantan, custou menos de US$ 6 a dose.
Cerca de um mês depois da assinatura do contrato, em março, a Precisa Medicamentos apresentou "invoices" —uma espécie de nota fiscal internacional— ao Ministério da Saúde. Mas os documentos traziam o emblema da Madison Biotech.
Dessa forma, o Ministério da Saúde pagaria as doses de Covaxin para a Madison Biotech, empresa que não está no contrato. A Madison Biotech, por sua vez, faria a entrega das vacinas ao Brasil. Além disso, as "invoices" diziam que o pagamento deveria ocorrer antes mesmo da chegada do produto ao Brasil —o que também contraria o contrato firmado com o governo brasileiro.
Os documentos com o nome da Madison Biotech chamaram a atenção de servidores do Ministério da Saúde. "Porque, se você tem um contrato assinado com um fornecedor, quem tem que te fornecer é aquele fornecedor, não uma empresa terceira que você desconhece, que não assinou", declarou Luis Ricardo Fernandes Miranda, servidor concursado do Ministério da Saúde, em entrevista para O Globo nesta semana.
Miranda é irmão do deputado Luis Miranda (DEM-DF), a quem teria comunicado sobre "inconsistências" nos documentos da Covaxin. O deputado Luis Miranda, por sua vez, diz que pediu uma reunião com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) para tratar do assunto. A reunião teria ocorrido em março. Segundo os irmãos Miranda, Bolsonaro foi informado sobre as suspeitas no contrato de compra da Covaxin.
A Precisa Medicamentos pertence à Global Gestão em Saúde e ao empresário Francisco Emerson Maximiano —que, por sua vez, também é sócio da Global. A Global Gestão em Saúde é investigada por outro contrato firmado com o Ministério da Saúde, na gestão do então ministro Ricardo Barros (2016-2018), também investigado no caso.
Hoje, Barros é deputado federal pelo Progressistas e líder do governo de Jair Bolsonaro (sem partido) na Câmara dos Deputados. A compra da Covaxin foi beneficiada por uma emenda de Barros na medida provisória que liberou importação de vacinas não aprovadas pela Anvisa.
Venda no Paraguai
Em 24 de abril, o Ministério das Relações Exteriores do Paraguai comunicou que, juntamente com o Ministério da Saúde do país, firmou contrato com a Madison Biotech para fornecimento de dois milhões de doses de Covaxin. O valor de compra da vacina não foi informado.
Três dias depois, a Controladoria Geral da República do Paraguai pediu que o Ministério da Saúde fornecesse mais informações sobre a Madison Biotech. O documento questiona por que a pasta não contratou o laboratório indiano diretamente, "apesar de haver informado que não se negociaria a compra de vacinas anticovid com intermediários, mas apenas com os laboratórios produtores".
O UOL questionou a controladoria paraguaia sobre o assunto, mas não teve resposta até a publicação desta reportagem.
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