Proibir manifestação política no Lolla é censura? Quem pagará multa?
A decisão do ministro Raul Araújo, do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), de proibir manifestações políticas no Lollapalooza é absurda, pode configurar censura prévia e abre um precedente perigoso pouco mais de seis meses antes das eleições, segundo especialistas ouvidos pelo UOL. Eles também criticam a multa de R$ 50 mil estipulada na decisão proferida neste fim de semana.
Para os juristas, os protestos espontâneos são garantidos pelo direito à liberdade de expressão e não podem ser confundidos com campanha eleitoral —esta, sim, proibida antes de 16 de agosto.
"A lei das eleições proíbe comícios organizados pelos partidos e pelos candidatos [antes de 16 de agosto], certo? E o Lollapalooza não é isso, é um evento privado. E política e música sempre tiveram uma relação muito íntima", diz Irapuã Santana, doutor em Direito e presidente da CIR-OAB (Comissão de Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil).
Existe uma censura, e é ainda mais grave porque é uma censura prévia. É claramente inconstitucional essa decisão."
Irapuã Santana, doutor em Direito
Silvana Batini, professora da FGV (Fundação Getúlio Vargas) Direito Rio, também fala em censura e avalia não ser possível de a Justiça Eleitoral dar conta de punir com multa —como determinou o ministro Raul Araújo— todos aqueles que se manifestarem de maneira espontânea, seja no Lolla ou em qualquer outro evento.
"Todo o trabalho da Justiça Eleitoral precisa se concentrar nos atos de campanha organizados pelos candidatos e pelos partidos. As manifestações absolutamente espontâneas, num festival de música, com o público reagindo? Impossível você achar que a Justiça vai dar conta desse tipo de coisa", afirma. "A organização do festival não tem como estabelecer o limite de atuação dos seus artistas. Você proibir manifestações futuras, acho que pode configurar censura prévia, sim."
Entenda a visão dos juristas sobre a decisão do ministro Raul Araújo:
Comentários no palco configuram propaganda político-eleitoral?
Na decisão, o ministro Raul Araújo considerou que as cantoras Pabllo Vittar e Marina, que é britânica, fizeram "comentários elogiosos" ao ex-presidente Lula (PT) e pediram que a plateia "exercesse o sufrágio em seu nome", o que, na visão dele, configuraria propaganda eleitoral antecipada. Especialistas discordam, reforçando que artistas são cidadãos como quaisquer outros e também podem se manifestar politicamente.
"A única coisa que poderia gerar algum debate são os gritos de 'fora, Bolsonaro'. Mas ele é o atual presidente. Igual se cantava 'fora, Dilma', 'fora, FHC'... Quem está no governo está sujeito a críticas contundentes", analisa Fernando Neisser, presidente da Comissão de Direito Eleitoral do IASP (Instituto dos Advogados de São Paulo).
Acho que há um excesso de interpretação. Não é uma decisão que eu gostaria que fosse extrapolada pelo TSE para todos os casos."
Fernando Neisser, presidente da CDE-IASP
O advogado eleitoralista Bruno Oliveira, por sua vez, acredita que os fatos de Pabllo e Marina serem famosas e estarem em um grande festival podem ter motivado a decisão do ministro do TSE.
"Uma das exceções para não configurar propaganda antecipada é a divulgação de posicionamento pessoal sobre questões políticas. O que talvez tenha levado a esta decisão é a repercussão exponencial de um evento [Lolla] e dos envolvidos nos discursos: pessoas conhecidas, com repercussão nacional", analisa. "É uma decisão muito delicada."
Multa de R$ 50 mil por descumprimento
Raul Araújo ainda estipulou multa de R$ 50 mil por "ato de descumprimento" —ou seja, a cada descumprimento. No texto, ele indicou que o valor deve ser pago pela organização do evento. Na visão de uma procuradora da República com quem o UOL conversou, porém, "é a clássica decisão inexequível", uma vez que o festival de música já está no fim.
Irapuã Santana, da CIR-OAB, concorda que a determinação "não tem força de ser aplicada na prática."
"É uma decisão que até enfraquece o poder institucional do TSE frente à sociedade. É uma decisão absurda, que ninguém vai cumprir, e quem sai prejudicado é o próprio Tribunal. Fora que a probabilidade de as manifestações aumentarem, como forma de reação, é muito grande", opina.
Para Márlon Reis, advogado e um dos idealizadores da Lei da Ficha Limpa, não há "praticidade" na cobrança da multa. "Se for processar a Pabllo Vittar, teria que considerar como partícipes todos aqueles que gritaram junto com ela. É impossível aplicar o que ele decidiu", avalia.
Neste domingo, após a decisão do TSE, durante sua apresentação no Lolla, a banda Fresno exibiu um "fora, Bolsonaro" no telão do palco e recebeu o apoio do público. O cantor Lulu Santos também se manifestou, citando uma frase já usada pela ministra Cármen Lúcia, do STF (Supremo Tribunal Federal): "Cala boca já morreu".
E daqui para frente?
Quase todos os especialistas ouvidos pelo UOL avaliaram que a decisão de Raul Araújo abre um precedente perigoso, uma vez que pode abrir brechas para punir outras manifestações legítimas no futuro.
"Para mim, transcende o que está acontecendo no Lolla. Se um artista for proibido de fazer manifestação política, isso pode valer para qualquer pessoa depois. Vamos acabar instituindo um estado de vigilância, típico de nações ditatoriais, em que as pessoas vão ter medo de falar sobre suas inclinações políticas", alerta Márlon Reis.
Se a decisão for mantida, isso será a tônica das eleições de 2022. É isso que vai definir a intensidade do debate público em 2022. Nós estamos anunciando um estado policialesco sobre o que as pessoas podem ou não dizer. Repito: essa decisão não é só sobre o Lollapalooza."
Márlon Reis, um dos idealizadores da Lei da Ficha Limpa
Silvana Batini é a única que diz ter uma visão "um pouco mais otimista". "É uma decisão liminar, monocrática, e acho que vai ser uma excelente oportunidade de o TSE estabelecer limites mais claros, parâmetros mais seguros, para a propaganda eleitoral", conclui.
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