Manaus: O que os governos federal, estadual e municipal fizeram de errado?
O colapso do sistema de saúde em Manaus (AM) no início de 2021 se deve a diversos fatores, que vão do climático às mutações do novo coronavírus. A administração pública, porém, também deve explicações: Afinal, o que os governos federal, estadual e municipal fizeram de errado ao ponto de faltarem botijões de oxigênio nas unidades de saúde?
Na quinta-feira (14), 2.516 novos casos do novo coronavírus foram registrados em Manaus e 1.300 no restante do estado do Amazonas, parte deles transferidos para a capital.
Negacionismo
Em julho do ano passado, logo após o primeiro colapso do sistema de saúde em Manaus, o médico Luis Alberto Nicolau, coordenador do hospital de campanha da capital, e o governador Wilson Lima (PSC) decretaram formalmente o fim da pandemia na cidade.
"Nós estamos declarando hoje por encerrado a covid em Manaus", afirmou o médico. "Pelos dados que nós temos, não acreditamos em segunda onda." Pouco depois, o governador divulgou o boletim da FVS (Fundação de Vigilância em Saúde), segundo o qual "não há nenhum registro de óbito por coronavírus na capital (...), uma notícia alentadora".
Desde março os dados de predição para não saturar o sistema de saúde estão lá. Em dezembro, os entes federativos já tinham os dados."
Wallace Casaca, professor da Unesp e coordenador do Info Tracker
"Como nenhum [ente federativo] fez nada, o Ministério Público precisou agir no começo de janeiro ao determinar o fechamento de atividades não essenciais", avalia Wallace Casaca, professor da Unesp e coordenador do Info Tracker, que monitora os dados da pandemia no Brasil.
"Quando o presidente manda tomar cloroquina, faz com que as pessoas adotem comportamento de risco", afirmou ao UOL Henrique Pereira, professor da Ufam (Universidade Federal do Amazonas) e coordenador do Atlas ODS Amazonas, que monitora os indicadores da pandemia no estado.
Bolsonaro emite um sinal para a população quando diz que as pessoas podem ir aos postos de saúde para receber medicação preventiva, o que não existe."
Henrique Pereira, coordenador do Atlas ODS Amazonas
Sem distanciamento social
Vivendo em Manaus desde meados de novembro, quando se mudou de São Paulo, o fotógrafo Francisco Sales, 33, acabou contaminado um mês e meio depois, no início de janeiro.
"Quando eu cheguei nem parecia que existia pandemia", afirma. "Onde eu moro tem uma praça com bares lotados todo dia. Depois que eles fechavam, as pessoas levavam cooler cheio de bebida para continuar bebendo na praça."
Já tinha até motorista de Uber que vinha buscar passageiro sem usar máscara."
Francisco Sales, fotógrafo
Governador cede à pressão
Manaus viveu o pico da pandemia em maio, com colapsos no sistema de saúde e funerário e recorde de internações pela doença. No dia 27 de dezembro, já na segunda onda, a taxa de ocupação do Hospital Delphina Aziz, referência no tratamento da doença, se aproximava de 100%. Àquela altura, Amazonas já havia desativado 85% dos leitos de UTI para covid-19.
No fim do ano, o governador chegou a endurecer as regras para abertura do comércio, mas voltou atrás após protestos de empresários no dia 26 de dezembro.
O governador tem um discurso esquizofrênico. Ele titubeia em cima do muro entre o que defende o governo federal e o municipal, mas agora está tentando seguir as normas da OMS (Organização Mundial de Saúde)."
Henrique Pereira, coordenador do Atlas ODS Amazonas
Governo federal não coordena
Em sua conta no Twitter, o médico doutorando na Universidade de Oxford Ricardo Parolin Schnekengerg responsabilizou o governo federal por não coordenar as ações em Manaus e no Brasil.
"Sem coordenação nacional, o controle epidêmico é impossível, e o Ministério da Saúde sempre soube disso. Estamos assistindo a uma catástrofe", afirmou.
Casaca, da Unesp, explica como se daria o trabalho do ministério: "Se um hospital está lotado, ele transfere os pacientes para outro estado. Se falta respirador, ele solicita o aparelho de onde ele é menos necessário. Se o governo federal se omite, fica tudo com o governo estadual, que não tem o poder de exigir respirador do estado vizinho."
Não há alinhamento entre o governo federal, estadual e municipal. Aí ninguém faz nada, muito menos o governo federal."
Wallace Casaca, da Unesp
"Nós fizemos a nossa parte, com recursos, meios", afirmou Bolsonaro na sexta (15). "O ministro da Saúde [Eduardo Pazuello] esteve lá na segunda-feira, providenciou oxigênio, começou o tratamento precoce, que alguns criticam ainda."
Em ação civil pública ajuizada na quinta na Justiça Federal de Manaus, cinco órgãos públicos federais e estaduais afirmam que a responsabilidade por dar uma solução ao colapso no fornecimento de oxigênio no Amazonas é do governo federal.
Prefeitura não testou
Ao contrário do governo estadual, Pereira elogia a transparência da prefeitura, "com base de dados completa; temos até o endereço de quem entrou no sistema ontem". "Já do estado, tivemos de pressionar para melhorar a qualidade das informações."
Ele critica, contudo, a falta de oferta de testes pelo município, medida fundamental para orientar isolamento social em todas as fases da pandemia.
A crise se agravou porque o município não adotou política própria de testagem e deixou a cargo do estado, que não testou o suficiente. É preciso lembrar que no começo da pandemia só poderia fazer exame quem estivesse com doença grave, já transmitindo a doença. Foi um erro na orientação da OMS."
Henrique Pereira, coordenador do Atlas ODS Amazonas
Faltam leitos e profissionais
"Não somos um bando de selvagens suicidas e acéfalos", diz o professor da Ufam. "A população não é a solução para explicar. Há coisas mais complexas envolvidas."
Somos uma cidade grande com um sistema de saúde subdimensionado, poucos hospitais e leitos mesmo com 7º PIB (Produto Interno Bruto) do país. São condições crônicas que já existiam."
Henrique Pereira, da Ufam
Ele diz que "não foi a demanda no interior que pressionou o sistema em Manaus". "Foram os pacientes de Manaus, metade da população do estado". Dos 3.816 casos registrados no Amazonas na quinta, apenas 1.300 foram no interior.
Casaca lembra que o sistema de saúde local não estava organizado para suportar essa demanda e "não tem a mesma infraestrutura de São Paulo, por exemplo". "Além disso, os profissionais da linha de frente em Manaus estão esgotados", afirma.
Outras razões para o caos
Os escândalos de corrupção durante a pandemia, como a compra de respiradores superfaturados em uma loja vinhos e a exoneração de membros do governo em razão dos escândalos, também contribuíram para a crise na saúde do estado e capital, dizem os especialistas.
Mas outras questões nada políticas também influenciaram. Casaca cita as aglomerações nas festas de final de ano, "ambiente perfeito para a disseminação do vírus", enquanto Pereira lembra da Zona Franca de Manaus, que recebe inúmeros estrangeiros pelo aeroporto internacional em razão das multinacionais instaladas na região.
"Acredito que tenha sido por isso que Manaus se tornou o epicentro precoce da pandemia na América do Sul", diz o professor, que também alerta para o período de chuvas no estado.
"Aqui já estamos no inverno amazônico, que dura até março. Não é por acaso que o pico da primeira onda acabou em maio, na transição, quando a contaminação por viroses diminui."
Casaca sugere outra "hipótese": a reinfecção de pacientes pelas novas cepas do vírus. Além de mais contagiosos, ele diz que alguns artigos apontam a queda da imunidade e possibilidade de nova infecção entre seis e oito meses após o primeiro contágio. Em São Paulo, por exemplo, 20% de quem já ficou doente está sem anticorpos, informou na quinta (14) o governo estadual.
Sales, o fotógrafo que se mudou para Manaus recentemente, disse que parecia ser o único paciente infectado pela primeira no hospital particular em que foi atendido. "Na sala de espera, todo mundo dizia que era a segunda vez que estavam com covid", diz.
O professor da Ufam não acredita na possibilidade porque "alguns estudos afirmam que a reinfecção é um evento raro" e é preciso mais dados para defender a tese.
Procurados, os governos estadual e municipal não responderam a reportagem. Se enviados, seus posicionamentos serão incluídos.
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