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Golpe a nacionalismo e impulso a cooperação: como crise do coronavírus pode afetar futuro global

Pensadores debatem sobre o modo com que a crise atual impactará as relações entre os países e as formas de governo mundo afora - Getty Images
Pensadores debatem sobre o modo com que a crise atual impactará as relações entre os países e as formas de governo mundo afora Imagem: Getty Images

João Fellet

Da BBC News Brasil, em São Paulo

23/03/2020 08h17

Para pensadores, países terão de coordenar ações para enfrentar pandemia e abandonar posturas isolacionistas; filósofo alerta para normalização do 'estado de exceção'

A pandemia do novo coronavírus parece ainda estar no início em boa parte do mundo, mas já causou milhares de mortes, impactou a economia global e restringiu a circulação de milhões de pessoas.

Enquanto médicos correm para tentar produzir uma vacina que combata o vírus Sars-Cov-2, pensadores debatem como a crise atual impactará as relações entre os países e as formas de governo mundo afora.

O novo coronavírus forçará governos nacionalistas - como o chefiado por Donald Trump nos EUA - a rever atitudes e buscar uma resposta coordenada com outras nações, uma vez que a pandemia tem ignorado fronteiras?

O aparente sucesso das rígidas medidas impostas pela China no combate à covid-19, em contraste com a hesitação de democracias ocidentais como EUA, Itália e Espanha, expõe que regimes autoritários estão mais preparados para lidar com desafios do mundo moderno?

Essas foram algumas das questões levantadas a partir de um artigo escrito no fim de fevereiro pelo filófoso italiano Giorgio Agamben.

Nas últimas décadas, Agamben se notabilizou por obras em que analisou medidas de "estado de exceção" adotadas por governos ocidentais sob a justificativa de combater o terrorismo.

Segundo o filósofo, essas medidas - como a difusão de dispositivos de controle de mídias digitais e o escaneamento em aeroportos - acabaram se aplicando a todos os cidadãos, fazendo com que o estado de exceção se tornasse a norma e abarcasse toda a sociedade.

Estado de exceção como normal

Em texto publicado em 25 de fevereiro no jornal italiano Il Manifesto, Agamben avaliou que a pandemia do novo coronavírus estava reforçando a tendência "de se utilizar o estado de exceção como paradigma normal de governo".

Ele criticou um decreto-lei publicado pelo governo italiano com uma série de medidas para tentar conter a doença, como o fechamento de escolas, a proibição de eventos e o bloqueio a áreas afetadas.

Segundo Agamben, as medidas haviam promovido uma "verdadeira militarização" do país, embora, segundo ele, a covid-19 fosse equivalente a uma "gripe normal".

Para o filósofo, autoridades e meios de comunicação italianos estavam espalhando "um clima de pânico" sobre a pandemia para justificar a adoção de medidas restritivas.

"Parece que, por ter se esgotado o terrorismo como causa de medidas emergenciais, a invenção de uma epidemia poderia oferecer o pretexto ideal para estendê-las para além de todos os limites", escreveu o filósofo.

Solidariedade global

O texto foi rebatido por vários acadêmicos, que discordaram da análise de Agamben sobre a baixa periculosidade da pandemia.

Em artigo no site The Philosophical Salon, mantido pela revista literária Los Angeles Review of Books, o filósofo esloveno Slavoj Zizek disse que a criação de um pânico artificial em torno da pandemia não seria do interesse de governos, pois perturbaria a economia e ampliaria o desgaste das autoridades perante a população.

"São claros os sinais de que, não apenas as pessoas comuns, mas também os poderes estatais estão em pânico, plenamente conscientes de não serem capazes de controlar a situação", afirmou o esloveno.

Zizek reconhece que as quarentenas impostas pelos governos limitaram a liberdade, mas aponta para um possível desdobramento positivo da crise atual.

Segundo ele, "a ameaça de infecção viral também deu um tremendo impulso a novas formas de solidariedade local e global, além de deixar clara a necessidade de controle sobre o próprio poder".

O filósofo cita, como prova da necessidade de controle do poder, a atitude de autoridades de Wuhan - cidade chinesa onde a doença surgiu - que omitiram informações iniciais sobre o surto, atrasando a adoção de medidas de contenção.

Coronavírus liga alerta pelo mundo

Resposta global

Zizek diz que a pandemia também pôs em xeque governos que tratam a soberania nacional como valor supremo e dão pouca atenção ao que ocorre fora de suas fronteiras.

Afinal, diz ele, a Organização Mundial de Saúde (OMS) tem dito que somente uma resposta articulada globalmente permitirá um combate eficiente contra a pandemia.

"Esta epidemia pode ser evitada, mas apenas com uma abordagem coletiva, coordenada e abrangente que envolva todo o mecanismo do governo ", disse, em 5 de março, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus.

Segundo Zizek, um dos governos mais pressionados pela pandemia é o de Donald Trump, que se elegeu com o slogan "América primeiro" e vinha dando pouca atenção a organismos internacionais, mas agora é cobrado a participar dos esforços globais para conter a pandemia.

Zizek diz que "a presente crise demonstra claramente como a solidariedade e a cooperação globais são do interesse da sobrevivência de cada um de nós, que é a única coisa racionalmente egoísta a se fazer."

Fim da globalização?

Em 8 de março o economista Will Huton, diretor do Hertford College, da Universidade de Oxford, publicou no jornal britânico The Guardian um artigo intitulado "O coronavírus não acabará com a globalização, mas a mudará para muito melhor".

Nele, ele diz que, com a pandemia, "uma forma de globalização não regulamentada e de livre mercado, com sua propensão a crises e pandemias, certamente está morrendo".

"Mas outra forma que reconhece a interdependência e a primazia da ação coletiva baseada em evidências está nascendo", afirmou.

Para Huton, haverá mais pandemias no futuro, e elas forçarão os governos a investir na saúde pública e a respeitar a ciência - assim como adotar providências semelhantes quanto às mudanças climáticas, ao cuidado dos oceanos, às finanças e à cybersegurança.

Compartilhamento de informações

Autor dos bestsellers Sapiens e Homo Deus, o historiador e filósofo israelense Yurval Harari publicou um artigo com conclusões semelhantes na revista Time, em 15 de março.

Nele, Harari afirma que muitas pessoas têm culpado a globalização pela pandemia do coronavírus e defendido "desglobalizar" o mundo - construindo muros, restringindo viagens e limitando o comércio - para prevenir novas ocorrências desse tipo.

Porém, diz ele, embora restrições de curto prazo sejam essenciais para limitar a propagação do vírus, "o isolacionismo no longo prazo só levará ao colapso econômico, sem oferecer nenhuma proteção real contra doenças infecciosas".

"O real antídoto contra a epidemia não é segregação, mas cooperação", defende.

Segundo Harari, a história mostra que o compartilhamento de informações científicas e a solidariedade global são as principais armas para combater crises como esta.

Para o israelense, "a coisa mais importante que as pessoas precisam entender sobre essas epidemias é que a propagação da epidemia em qualquer país ameaça a espécie humana inteira".

Ele afirma que, se pandemia ampliar as divisões e desconfianças entre os humanos, "será a maior vitória do vírus".

Já se ela provocar uma maior cooperação global, "será uma vitória não só contra o coronavírus, mas contra todos patógenos futuros".

EUA x China

As formas como a China e os EUA têm reagido à pandemia também têm sido analisadas por pensadores, que tentam prever como a crise atual impactará a disputa entre as duas nações mais poderosas do mundo.

Gideon Rachman, principal colunista de política externa do jornal britânico Financial Times, publicou em 16 de março um artigo no qual diz que a China tem conseguido mudar as percepções sobre sua reação à pandemia.

Inicialmente criticada por ter censurado e punido médicos que alertaram sobre a gravidade da covid-19, a China tem conseguido conter novas infecções após medidas drásticas adotadas pelo governo.

Por outro lado, a doença vem avançando rapidamente na Europa e nos EUA, gerando dúvidas sobre a capacidade de reação dos governos ocidentais.

O número de mortos pela covid-19 na Itália, país europeu mais afetado pela pandemia, já ultrapassou o total de mortos na China, embora o país asiático tenha 23 vezes mais habitantes que o europeu e esteja exposto ao vírus há mais tempo.

Rachman afirma que, em parte, a relutância de europeus em adotar medidas duras contra a epidemia, permitindo que os casos se multiplicassem rapidamente, reflete "as dificuldades que democracias terão em manter restrições de estilo chinês por longos períodos".

"Com a Espanha, a Itália e a França impondo duros controles sobre o movimento das pessoas, as capacidades administrativas e sociais da democracia europeia estão enfrentando um teste de estresse extraordinário", diz.

Para Rachman, os resultados distintos de chineses e países ocidentais no enfrentamento da epidemia farão com que "a crença de que a China está em ascenção e de que o Ocidente está em inexorável declínio ganhe novos adeptos".

O cenário também encorojará argumentos pró-autoritarismo e anti-democracia tanto na China quanto no Ocidente, diz ele.

"A última crise global - o colapso financeiro de 2008 - desencadeou uma perda da autoconfiança ocidental e uma mudança do poder político e econômico para a China. A crise do coronavírus em 2020 poderá forçar uma mudança muito maior na mesma direção", diz o analista.

Democracias bem-sucedidas na resposta

Racham ressalva, no entanto, que países democráticos na Ásia - como a Coreia do Sul, Singapura e Taiwan - também têm tido sucesso na contenção do vírus sem recorrer à paralisação total.

Esses países, diz o analista, aplicaram exames de detecção em larga escala e foram rápidos em adotar o distanciamento social - medidas que, segundo ele, os EUA e a União Europeia provavelmente levaram muito tempo para encampar.

Outra ressalva feita por Rachman é que, apesar do aparente sucesso chinês em conter o vírus, o país ainda terá de responder "como deixaram o vírus fugir do controle em primeiro lugar, e o que vai acontecer quando as restrições de movimento forem aliviadas".

Resposta dos EUA

Outro elemento a se considerar nos desdobramentos da crise é como os EUA reagirão, escrevem Kurt Campbell e Rush Doshi em artigo para a revista Foreign Affairs, em 18 de março.

Eles argumentam que o status dos EUA como um líder global nas últimas sete décadas foi construído não só em cima de riqueza e poder, mas também na sua capacidade e disposição de coordenar respostas a crises globais, na legitimidade de sua governança doméstica e na sua oferta de bens para outras nações.

"A pandemia do coronavírus está testando todos os três elementos da liderança dos EUA. Até agora, Washington está sendo reprovado no teste", afirmam.

Eles dizem que os EUA têm evitado assumir um papel de liderança global no enfrentamento da pandemia - postura distinta da adotada no governo Barack Obama durante a crise do ebola, na África, em 2014.

Afirmam ainda que os EUA hoje dependem de importações para suprir suas necessidades de equipamentos e medicamentos contra a covid-19 e têm falhado em examinar casos suspeitos.

"A China, em contraste, tem promovido uma campanha diplomática intensa para reunir dúzias de países e centenas de autoridades, geralmente por videoconferência, para compartilhar informações sobre a pandemia e lições da experiência da própria China no combate à doença", argumentam.

O país asiático é ainda o maior produtor de máscaras e outros equipamentos usados contra a pandemia.

"Quando nenhum país europeu respondeu ao pedido urgente da Itália por equipamentos médicos e de proteção, a China publicamente se comprometeu a enviar mil ventiladores, dois milhões de máscaras, 100 mil respiradores, 20 mil aventais de proteção, e 50 mil kits de exame", dizem.

A China também enviou equipes médicas e 250 mil máscaras ao Irã, além de enviar equipamentos para a Sérvia. O fundador da Alibaba, gigante chinesa de comércio eletrônico, se comprometeu a enviar kits de exame e máscaras para os EUA, além de 20 mil kits de exame e 100 mil máscaras para cada um dos 54 países africanos.

Os autores defendem que, em vez de se contrapor aos chineses na resposta à pandemia, os EUA deveriam coordenar seus esforços com Pequim para desenvolver uma vacina contra a covid-19, socorrer a economia global, compartilhar informações, mobilizar indústrias para produzir equipamentos médicos e oferecer ajuda a outros países.

"No fim das contas, o coronavírus pode até servir como um alerta, promovendo o progressso em outros desafios globais que requerem a cooperação EUA-China, como as mudanças climáticas", diz o artigo.

"Esse passo não deve ser visto - e não seria visto pelo resto do mundo - como uma concessão ao poder chinês. Em vez disso, ele ajudaria a restaurar a fé no futuro da liderança americana."