'Como fantoches': Judiciário passa a decidir quem concorre ou não à eleição no Brasil, dizem brasilianistas
A decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin que, ontem, anulou as condenações e indiciamentos contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no âmbito da Operação Lava Jato representou, na prática, o início da campanha presidencial de 2022 — um ano e sete meses antes dos brasileiros irem efetivamente às urnas.
Essa é a avaliação de um grupo de brasilianistas — acadêmicos estrangeiros dedicados ao estudo do Brasil — sobre o impacto da medida jurídica no cenário político brasileiro.
Fachin determinou a nulidade das ações justificando a decisão em um aspecto processual: a falta de competência jurídica do então juiz Sergio Moro, da Justiça Federal de Curitiba, para decidir sobre os casos envolvendo o ex-presidente Lula. Com isso, Fachin sedimentou o caminho para uma disputa polarizada entre os dois maiores líderes em cada campo político no país. À esquerda, Lula. À direita, o atual presidente Jair Bolsonaro.
"Quatro horas atrás eu te diria que havia um 'mercado' de eleitores de centro, centro-direita esperando para ser conquistados por uma terceira via. Agora esse caminho é improvável", afirmou à BBC News Brasil a cientista política Amy Erica Smith, da Iowa State University, no fim da tarde de ontem.
Para Smith, a canetada de Fachin deve encerrar — ou diminuir muito — as possibilidades de viabilidade eleitoral de candidaturas de centro-direita, como a do governador paulista João Doria Jr. ou a do apresentador Luciano Huck. A tendência é que o eleitorado seja atraído para uma das duas forças, esvaziando o centro.
Mas, na avaliação dos brasilianistas, mais do que determinar os concorrentes da disputa de 2022, a decisão revela importantes aspectos da condução da democracia brasileira nos últimos anos — em que o Judiciário interfere na política como quem manipula fantoches, decidindo quem pode ou não concorrer à eleição presidencial. As sequelas dessas ações, segundo eles, passam por descrédito institucional e enfraquecimento da pauta de combate à corrupção no país.
Barrado antes, liberado agora
Embora tenham hoje um ao outro como principal adversário político a ser batido, o confronto entre Lula e Bolsonaro jamais aconteceu nas urnas. Isso porque em 2018, apesar de líder nas pesquisas eleitorais de intenção de voto, Lula acabou tendo a candidatura barrada pela Lei da Ficha Limpa, após as mesmas condenações de Moro contra ele — agora derrubadas por Fachin — terem sido confirmadas pela segunda instância do Judiciário brasileiro.
Com a retirada de Lula da disputa por mecanismos judiciais, Bolsonaro assumiu a dianteira na campanha e venceu a presidência em segundo turno, contra Fernando Haddad (PT), apontado por Lula para substituí-lo.
Agora, a decisão de Fachin restitui a Lula plenos direitos políticos e ele poderá concorrer à presidência se não voltar a ser condenado em segunda instância até o processo eleitoral. A decisão de Fachin não analisa se Lula cometeu atos de corrupção ao supostamente se beneficiar de um apartamento tríplex no Guarujá ou de um sítio em Atibaia bancados em parte por empreiteiras que mantinham contratos fraudulentos com a Petrobras. Ao longo de anos, a Lava Jato sustentou que tais benefícios a Lula fariam parte de pagamentos indiretos dessas empresas pelas injustas vantagens que conseguiam com a petroleira estatal graças à intervenção de políticos, foco principal da Lava Jato de Curitiba.
"Tem havido uma batalha sobre a jurisdição do caso Lava Jato desde 2013 e agora é estranho ver um ministro do Supremo tomar uma decisão com base nessa questão. Como americano e estudioso da América Latina, a ideia de que um único ministro da Suprema Corte possa tomar uma decisão dessa magnitude é esquisito. E contradiz um pouco a história de que as instituições no Brasil se tornaram mais fortes", avalia Brian Winter, editor-chefe da publicação Americas Quarterly, especializada em temas latino-americanos. Winter relembra que a tese de que Moro e seus colegas em Curitiba não seriam os juízes competentes para julgar o caso Lula — o que se chama no direito de juiz natural do caso — foram repetidas pela defesa do ex-presidente e repelidas à exaustão pelo judiciário brasileiro até a tarde desta segunda-feira.
A mudança de postura em relação ao assunto no Supremo acontece na esteira de um processo de anos de desgaste da figura de Moro e dos procuradores da força-tarefa, liderados por Deltan Dallagnol.
Moro foi acusado de parcialidade quando, poucos dias antes do pleito de 2018, liberou a público a delação premiada do ex-ministro dos governos Lula e Dilma Antonio Palocci, em que ele atacava a cúpula petista, sem entregar provas do que dizia. Em seguida, com a vitória de Bolsonaro, Moro abandonou a magistratura para assumir, no começo de 2019, o posto de ministro da Justiça do recém-eleito. Ainda naquele ano, mensagens hackeadas entre o então juiz Moro e os procuradores revelaram que o juiz havia orientado e conduzido a acusação em diversos momentos do processo contra Lula, o que lançou dúvidas sobre a parcialidade do magistrado para julgar o caso que - em última instância - tirou Lula da disputa presidencial.
Considerada por Deltan Dallagnol a "maior especialista em combate à corrupção do mundo", Susan Rose-Ackerman, professora de Direito da Universidade Yale, afirmou à BBC News Brasil que a decisão de Fachin agora foi acertada.
Em 2019, ela assinou uma carta junto a colegas juristas internacionais em que se dizia "estarrecida" pela revelação das mensagens trocadas entre Moro e os procuradores e denunciava a parcialidade na atuação do juiz.
"Muita coisa aconteceu na investigação, Moro era o juiz nos casos (da corrupção na Petrobras), mas o caso do Lula era diferente, não fazia parte de todo o pacote. Por isso acho acertada a decisão de agora, mas certamente há um problema com o tempo. Isso impediu o Lula de ser candidato e permitiu a ascensão de Bolsonaro. Então não sei o que as pessoas pensam agora, mas há, sim, um problema com o fato de essa decisão estar sendo tomada só agora, vários anos após a eleição", diz Rose-Ackerman.
Montanha-russa jurídico política
Para Amy Erica Smith, o fato de que Lula tenha sido barrado antes por decisões judiciais e agora readmitido às urnas também pelas mãos de juízes, em decisões díspares sobre os mesmos fatos, é um dado preocupante para a democracia brasileira.
"Há uma montanha-russa de judicialização da política no Brasil. A Lava Jato e tudo isso que aconteceu nos últimos anos dão a impressão de que os juízes têm a palavra final sobre o que acontece na democracia brasileira. E as decisões dos juízes são realmente muito arbitrárias, politizadas, e muito longe de serem imparciais", afirma Smith.
Segundo ela, a Lei da Ficha Limpa, que barrou condenados em segunda instância de se candidatarem, seria uma regra bastante razoável para melhorar a qualidade dos candidatos, desde que os devidos processos legais fossem seguidos pelos investigadores e pela justiça. Há, no entanto, no caso de Lula, de acordo com Smith, evidências de que ela acabou usada para retirar uma força política do jogo.
"A democracia brasileira se reduziu a uma espécie de procedimento institucional para determinar quem pode concorrer e quem não pode concorrer, quais opções permitiremos ou não. Parece ter havido um esforço concertado no período de 2015 a 2018 para manter certos líderes do PT, basicamente Dilma e Lula, longe da possibilidade de disputar cargos ou ocupar cargos. Essa politização da Lava Jato em Curitiba e do Supremo levaram a essa situação em que os juízes atuam como 'master puppeteers' (bonequeiros que manipulam fantoches) preparando o palco para o que é permitido acontecer dentro da política brasileira", diz Smith.
Nos últimos anos, o Judiciário tomou decisões nas quais questiona-se extrapolação sobre outros poderes, como quando barrou a indicação de ministros do Executivo ou determinou prisão de parlamentares.
O historiador James Green, da Brown University, acredita que Lula ainda estará sujeito a reviravoltas orquestradas pelo Judiciário. Green avalia que a condenação de Lula foi um "ato político", resultado de um "processo judicial contaminado". Para ele, a decisão de Fachin agora procura preservar o conjunto de provas amealhado pela Lava Jato ao tirar da ordem do dia o julgamento da possível suspeição de Moro, que colocava sob ameaça todo o legado da operação por efeito cascata.
Por isso mesmo, a condição elegível de Lula poderia ser temporária já que, em tese, ele poderia voltar a ser julgado com o mesmo conjunto probatório. "Fachin deve ter conseguido um certo acordo, um entendimento entre os outros membros do STF sobre essa como uma saída mais viável. E eu acho que vai ser muito difícil começarem os processos da primeira instância de novo, mas pode ser, podem condenar Lula de novo para que ele não seja candidato", diz Green.
A morte do combate à corrupção?
O cenário de atuação política do Judiciário parece apontar para um descrédito na atuação de forças no combate à corrupção no Brasil. Os brasilianistas reconhecem a corrupção como um problema histórico nacional e afirmam ser impossível determinar qual será o futuro do combate aos crimes contra o bem público após os desdobramentos dos últimos anos com a Lava Jato.
Apesar das críticas feitas por Rose-Ackerman no caso Lula, ela afirma esperar que isso não invalide o restante da investigação, que demonstrou ser robusta em apontar desvios na gestão da Petrobras.
"Seria realmente lamentável se isso minasse todos os outros processos em que há uma evidência muito boa e clara de que as pessoas se comportaram de forma corrupta. Essa é a preocupação, de que a derrubada do caso Lula possa, de alguma forma, prejudicar toda a empreitada anticorrupção", afirmou a professora de Yale.
Para Winter, a decisão de Fachin hoje expõe o quão ferida a causa do combate à corrupção está ao derrubar as mais importantes decisões tomadas na operação. Segundo ele, "os abusos" cometidos por Moro e os procuradores representaram um "grande retrocesso na busca pelo fim da impunidade" não só no Brasil, mas em toda a região da América Latina onde a Lava Jato foi tomada como modelo de investigação e punição de empreiteiras e políticos. Ele, no entanto, afirma que a Lava Jato não pode ser reduzida a seus erros.
"É importante resistir ao desejo de reescrever a história e retratar as revelações da Lava Jato, como nada mais que um sonho febril, uma vasta conspiração inventada pelos procuradores e Sergio Moro com o único objetivo de condenar Lula e desqualificá-lo para a eleição de 2018", diz Winter.
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