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Lula inicia a volta do Brasil ao cenário internacional a partir da Argentina

Lula chegou à Argentina na noite deste domingo (22) - Ricardom Stuckert
Lula chegou à Argentina na noite deste domingo (22) Imagem: Ricardom Stuckert

Márcio Resende

RFI, em Buenos Aires

23/01/2023 07h46

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva começa nesta segunda-feira (23) na Argentina uma visita oficial durante a qual vai relançar o vínculo estratégico com a Argentina, ponto de partida para a reinserção do Brasil como ator global. O novo governo procura recuperar o terreno perdido durante a gestão anterior com vários projetos entre os quais um gasoduto que transporte gás da Argentina ao Brasil, dinamizando as duas economias. Lula pode também ter reunião com o venezuelano Nicolás Maduro.

A viagem do presidente Lula à Argentina marca o retorno do Brasil à tradição bilateral de que o novo presidente de um país tenha o vizinho como primeira escala internacional, uma tradição iniciada em meados de 1980, quando Brasil e Argentina se tornaram o eixo da integração regional.

Esse vínculo estratégico foi interrompido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro em 2019, quem também deu as costas aos demais países vizinhos, isolando o Brasil na região.

Durante os últimos três anos, desde que Alberto Fernández assumiu o poder, Bolsonaro não visitou a Argentina por razões ideológicas, irritado desde que Alberto Fernández visitou o amigo Lula na prisão em Curitiba em 2019.

Para o Brasil, a inserção internacional brasileira ganha projeção ao ter integrado um sócio relevante como a Argentina. Por sua vez, a inserção internacional da Argentina passa pela aliança estratégica com o Brasil. A visita de Lula restabelece o vínculo bilateral mais importante para o Brasil, aquele que lhe permite liderar uma região.

"A visita de Lula implica um restabelecimento do vínculo bilateral e um papel de liderança do Brasil. Lula representa a normalização dos vínculos bilaterais entre os dois sócios estratégicos, depois do rompimento por parte da gestão de Jair Bolsonaro dessa tradição da política externa brasileira", avalia à RFI o cientista político, Sergio Berensztein, uma referência na Argentina.

Soberania energética

Os dois países vão assinar entendimentos em matéria de soberania energética, integração financeira, defesa, saúde, ciência, tecnologia e inovação, além de um acordo de cooperação Antártico.

O mais estratégico a médio prazo é o de soberania energética que prevê a construção de um gasoduto entre a reserva patagônica de Vaca Muerta, a segunda maior jazida de gás de xisto e a quarta de petróleo não-convencional do mundo, até o Sul do Brasil.

A guerra na Ucrânia gerou oportunidades e urgências em matéria energética. Em Vaca Muerta, há suficiente gás para abastecer toda a Europa. Porém, faltam à Argentina recursos financeiros para construir um gasoduto e uma planta que permita exportar essa energia.

A Argentina também se entusiasma com o mercado brasileiro, enquanto o Brasil tem interesse em garantir a sua segurança energética, diminuindo a dependência do gás boliviano.

Para isso, a Argentina quer que o Brasil financie, através do BNDES, a construção do gasoduto. O que mais aparece avançado, no entanto, é o papel do BNDES como financiador dos canos de aço para o gasoduto. Esses canos são produzidos no Brasil pela empresa argentina Techint. O Brasil financiaria essas exportações à Argentina.

Essa obra estratégica dinamiza a economia dos dois países e gera um grande interesse entre os empresários.

"Interessa ao Brasil o gasoduto de Vaca Muerta até o Sul do Brasil, criando uma alternativa ao gás da Bolívia e barateando custos. Há muitos negócios que surgem a partir disso. Esse abastecimento tem potencial para ser um dos eixos estratégicos da relação bilateral", indica Sergio Berensztein.

Moeda comum

O capítulo mais polêmico se relaciona à chamada integração financeira. Haverá um memorando de entendimento para começar a estudar a possibilidade de uma moeda em comum, além de outros instrumentos financeiros compartilhados.

O lado polêmico está na confusão entre moeda em comum e moeda única. Uma moeda única significaria substituir o real brasileiro ou o peso argentino por outra moeda, a exemplo do euro na União Europeia. Esse projeto não aparece no horizonte.

No caso de uma moeda em comum, a ideia passa por uma unidade virtual de valor que diminua o uso e a dependência do dólar. Essa unidade seria uma referência para operações de importação e de exportação no comércio bilateral. Uma unidade que surgiria na hora de fazer a compensação comercial. O projeto é ainda embrionário.

As reservas do Banco Central argentino são escassas. Diante da falta de dólares, a Argentina tenta avançar com qualquer projeto que traga alívio. Um deles remete à possibilidade de um mecanismo de "swap", um intercâmbio de moedas, entre peso e real, nas operações comerciais com o Brasil. É um mecanismo entre Bancos Centrais ao que a Argentina poderia recorrer se ficasse sem dólares para as importações vindas do Brasil.

"Trata-se de uma moeda essencialmente contábil e aplicável ao comércio bilateral Brasil-Argentina, afastando a necessidade de usar dólares americanos que, para a Argentina sobretudo, é crucial, devido à carência de reservas internacionais no Banco Central. Os acordos financeiros e econômicos realizados entre os dois países e pactados em dólares passariam a essa moeda virtual", explica à RFI o analista internacional argentino, Jorge Castro.

"Na Argentina, existe uma expectativa de que com a chegada de Lula ao poder, existem chances concretas de uma dinâmica de cooperação para melhorar a situação das reservas, mas tanto o 'swap' quanto a 'moeda comum' não parecem realizáveis a curto prazo", observa Berensztein.

Agenda pode incluir Nicolás Maduro

O presidente Lula estará na Casa Rosada com o presidente Alberto Fernández no final da manhã desta segunda-feira, onde vão assinar todos esses entendimentos e explicá-los à imprensa.

Na parte da tarde, ainda na Casa Rosada, haverá um encontro com referentes de organismos de Direitos Humanos na Argentina e uma reunião com cerca de 300 empresários, sendo 50 deles brasileiros.

Essa elevada quantidade de empresários indica a expectativa de retomada de negócios entre os dois países, a partir da maior sintonia entre os presidentes Lula e Alberto Fernández.

Lula deve ter uma reunião com a vice-presidente Cristina Kirchner, antes de um evento à noite cultural com artistas argentinos e brasileiros.

É possível que Lula se reúna ainda nesta segunda-feira (23) com o venezuelano Nicolás Maduro, mas o mais provável é que a reunião aconteça nesta terça-feira (24) no final da reunião de Cúpula da Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos (CELAC). Também haverá uma bilateral com o cubano Miguel Díaz-Cané.

Brasil e Venezuela estão próximos de restabelecerem relações diplomáticas com a reabertura da Embaixada do Brasil em Caracas, depois da ruptura durante o governo Bolsonaro.