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De olho no ouro: o que alimenta o apetite da Rússia pela guerra civil do Sudão

Presidente russo Vladimir Putin em discurso no fórum anual do grupo Valdai, em Moscou - Mikhail Metzel/SPUTNIK via REUTERS
Presidente russo Vladimir Putin em discurso no fórum anual do grupo Valdai, em Moscou Imagem: Mikhail Metzel/SPUTNIK via REUTERS

Da RFI*

29/04/2023 04h00

Região estratégica entre a África e o Oriente Médio, o Sudão é um país pobre que enfrenta a violência endêmica e, agora, uma guerra civil. Em 2005, dois anos após o início de uma rebelião sangrenta em Darfur, que deixou cerca de 300.000 mortos, Moscou violou o embargo da ONU, tornando-se o único fornecedor de armas do regime. O país continua representado em solo africano pelo grupo armado de mercenários Wagner, que defende os interesses do Kremlin, e que apoia, segundo experts, uma das milícias que brigam pelo poder.

Explosões, ataques aéreos e tiros continuam na capital Cartum e outras cidades sudanesas, mas países estrangeiros conseguiram negociar a retirada de seus cidadãos com os dois beligerantes: o exército do General Abdel Fattah al-Burhane, líder de fato do Sudão, e seu vice - o General Mohamed Hamdane Daglo, conhecido como "Hemeti", que comanda as FSR. Foi necessário "aproveitar uma pequena janela de oportunidade", explicou nesta segunda um porta-voz do governo britânico.

Além do bloco, que tem uma delegação em Cartum, sete países membros (França, Alemanha, Itália, Espanha, Holanda, Grécia e República Tcheca) estão representados na capital. Mas nem todos os países se posicionam da mesma forma desde o início das hostilidades.

A Rússia parece ter razões de sobra para querer continuar no país, mas para entender melhor os interesses russos na região, é preciso voltar algumas décadas no tempo.

A leste do continente africano, e dominando a entrada de navegação ao Mar Vermelho, o Sudão (ou seus atuais líderes) também parece(m) ter alguns interesses na presença do aliado russo. O país foi um dos únicos a se abster da votação na Assembleia Geral das Nações Unidas sobre o texto que condenava a invasão russa na Ucrânia.

Minas de ouro e geopolítica aumentam apetite russo

"Os russos estão por trás de Hemeti, que prometeu fidelidade e recebe suas ordens de Moscou", declarou ontem o coronel Peer de Jong, um especialista em empresas militares privadas, à revista francesa Le Point. "Ele vai precisar do apoio material deles (russos) para enfrentar o exército sudanês", sublinhou o especialista.

Ainda segundo ele, sem sinais de desescalada no conflito no momento, "é preciso recuar alguns anos para entender como Moscou conseguiu se enredar em todos os níveis do Estado sudanês". Mais precisamente, é preciso voltar ao início dos anos 2000, quando a Rússia cresceu os olhos para este país de cerca de 30 milhões de habitantes, a maioria sunitas muçulmanos.

Em 2014, o Sudão reconheceu a anexação da Crimea pela Rússia, uma decisão diplomática importante, na contramão de quaisquer parceiros ocidentais. Em 2017, Moscou e Cartum assinaram um acordo para a criação de uma base naval russa, que seria construída em Port Sudan, a segunda maior cidade do país, respondendo por 90% das exportações nacionais. Um símbolo forte para a Rússia, que não tinha base na África desde a queda da URSS.

Nas margens do Mar Vermelho, o porto está localizado hoje no coração de uma das rotas de navegação mais movimentadas do mundo. China, Estados Unidos, França e Japão já se encontram presentes lá, com suas forças estacionadas em Djibouti, no sul da baía sudanesa.

Apesar dos repetidos golpes de Estado (nove, desde os anos 1960), nos quais Cartum detém o triste recorde africano, a cooperação com Moscou tem permanecido forte ao longo dos anos. Em outubro de 2021, mais um golpe sacudiu o país, quando o chefe de gabinete do governo anterior, general Abdel Fattah al-Burhan, finalmente tomou o poder, compartilhado com seu braço direito: "Hemeti", o chefe da RSF, as chamadas forças revolucionárias sudanesas.

"Os egípcios, que tinham muita influência no Sudão, não queriam civis no poder. O mesmo vale para os russos, que, no entanto, precisam de um parlamento para aprovar leis que lhes sejam favoráveis", analisa Roland Marchal, pesquisador da Sciences Po Paris e especialista em Sudão, ao site Slate.

Treinadas e equipadas por Moscou, as RSF deixaram o grupo Wagner no controle de novas minas de ouro, das quais o Sudão é o terceiro maior produtor na África.

Apesar das reiteradas negativas oficiais da Rússia, as visitas diplomáticas de alto nível continuam entre os dois países.

Em fevereiro de 2023, o chanceler Sergei Lavrov finalizou seu giro africano com uma visita ao Sudão, onde insistiu em acabar com as sanções impostas pelas Nações Unidas, elogiando os esforços de Cartum "para atrair investimentos russos".

Ouro para o Kremlin?

Desde a volta dos militares ao poder, a colaboração entre o Grupo Wagner e Hemedti se intensificou. Em fevereiro de 2022, enquanto a Rússia dava início à invasão da Ucrânia, Hemedti viajou a Moscou para dar apoio aos planos russos de estabelecer uma base militar no Mar Vermelho, algo que havia sido rejeitado por Burhan.

Nessa viagem à Rússia, o avião utilizado por Hemedti também teria transportado barras de ouro, segundo apurou o jornal americano The New York Times, citando autoridades ocidentais. Nas conversas em Moscou, o paramilitar sudanês teria pedido ajuda às autoridades russas para adquirir equipamentos militares.

Em 2021, até 32,7 toneladas de ouro sudanês - avaliadas em 1,9 bilhão de dólares - haviam desaparecido, segundo uma reportagem da emissora americana CNN, que diz ter encontrado provas de que a Rússia colaborou com a junta militar do Sudão para assegurar que bilhões de dólares em ouro fossem desviados do Tesouro do país em troca de apoio político e militar do Kremlin.

"Durante todo o tempo, esse esquema corrupto envolvendo o Grupo Wagner e o governo militar era supervisionado por Hemedti", afirmou o ativista sudanês de direitos humanos Ahmed Abdallah, que vive exilado na Alemanha. "Sempre me pareceu que ambos [Hemedti e Burhan] não estavam de acordo no que diz respeito a como fazer negócios com o Grupo Wagner."

Na semana passada, a CNN apontou que o grupo de open source All Eyes on Wagner ("Todos os olhos sobre o Wagner") analisou imagens de satélite que pareciam mostrar um avião de transportes russo realizando um trajeto entre duas bases na Líbia controladas por Khalifa Hifter, líder do Exército Nacional Líbio, apoiado pelo Grupo Wagner.

Segundo a reportagem, o aumento das atividades do Grupo Wagner nas bases aéreas líbias sugere um plano de Hifter e Moscou para apoiar as FAR, mesmo antes de o atual conflito começar.

Negócios obscuros

"Por trás das investidas de Hemedti pode estar o Grupo Wagner, cujos membros foram presos e acusados de traficar ouro pelo regime de Burhan antes do início dos confrontos", afirmou à DW o advogado sudanês Yaser Abdulrehman. "Hemedti e o Wagner são como gêmeos siameses."

As intenções do grupo russo, porém, permanecem obscuras. "Ao mesmo tempo que o Wagner oferece ajuda militar a Hemedti, seu envolvimento nesse conflito continua nebuloso", avaliou Isabella Curie, que pesquisadora as atividades do grupo paramilitar.

"É preciso cautela antes de se chegar a conclusões sobre uma potencial aliança entre o Wagner e Hemedti, ou sobre o papel do grupo ao incitar a turbulência civil no Sudão. A instabilidade no país pode ser prejudicial tanto ao governo Putin quanto à rede de Prigozhin, em particular, se o conflito começar a ter impacto sobre a fronteira sudanesa com a República Centro-Africana, onde Prigozhin possui relações e contratos de extração de recursos", observou a pesquisadora.

*Com informações da AFP e da DW