Facções na Amazônia aprofundam desmatamento e deixam rastro de violência, diz ONU
O combate ao desmatamento e à proteção de indígenas têm hoje um componente ainda mais desafiador ao poder público: a presença de grupos criminosos oriundos de presídios de São Paulo e Rio de Janeiro, que se expandiram na região Norte a partir da cooptação de presos locais. O Relatório Mundial sobre Drogas 2023, divulgado esta semana pela ONU, trouxe pela primeira vez um capítulo sobre a criminalidade na Amazônia, destacando como os mesmos agentes do narcotráfico se ramificaram para operar crimes ambientais e intensificar o ataque à floresta.
O uso da região como rota para o tráfico de drogas já é conhecido há alguns anos, mas a expansão desses grupos organizados, como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), sobre outras atividades ilícitas, seja em parceria com facções locais ou eliminando rivais, tem chamado a atenção de especialistas e deixado um rastro de violência.
Um estudo do Fórum Nacional de Segurança Pública (FPSP) sobre o tema mostra que, em 2022, mais de oito mil pessoas foram assassinadas na Amazônia Legal, que registrou no ano passado uma taxa de 26,7 mortes por 100 mil habitantes. O índice é bem acima dos demais estados brasileiros, de 17,7. Com isso, o índice de violência letal na Amazônia Legal hoje é 50,8% superior à taxa das outras unidades da federação.
"Temos a interiorização da violência. Crescimento das taxas de homicídio em municípios rurais, florestais ou intermediários, ou seja, fora dos centros urbanos", afirmou à RFI David Marques, Coordenador de Projetos do FBSP.
Marques explicou que atividades ilegais já existiam ali, mas que há uns seis anos houve um crescimento da atuação dessas facções criminosas. "Tem a ver com o aumento da população carcerária nesses estados e com o interesse estratégico para a dinâmica do narcotráfico, especialmente a cocaína, seja para o mercado interno, seja como ponto de passagem para Europa, África e até Ásia. E hoje com ações ilícitas que vão se sobrepondo", explicou Marques.
Com o domínio de rotas e estradas usadas no tráfico, os grupos criminosos do sudeste passaram a atuar também no garimpo ilegal, inclusive na terra Yanomami, na ocupação irregular do solo e na exploração de madeira, situação que, segundo relatório da ONU, tem tido peso decisivo no aumento da devastação ambiental na região. Com armamento pesado eles controlam pesagem, cobram pedágio, prometem proteção a aliados e passam a comandar a rede econômica que se cria com as atividades ilegais.
"É uma área de baixo nível de fiscalização, pouca presença institucional, baixo risco de detecção. Você tem ali uma situação permeável que facilita a captura e cooptação de agentes públicos, e uma violência instaurada, veja aí a morte do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Philips, ano passado. Então é o ambiente perfeito para se explorar uma atividade ilícita", avaliou à RFI o promotor Fábio Bechara, do Ministério Público de São Paulo, que trabalha no combate ao crime organizado.
"Um estudo do Instituto Igarapé mostra que, na tabela das atividades ilícitas, o garimpo é o segundo mais lucrativo, só está atrás da venda de cocaína. Grupos criminosos com alto poder econômico vão ter mais facilidade de penetração ali diante desse cenário. E isso desafia profundamente a capacidade estatal de resposta", alerta Bechara.
Afrouxar leis e órgãos ambientais ajuda facções
A presença de grupos organizados de alto poder econômico e grande periculosidade na Amazônia Legal exige um profundo trabalho de convergência das forças políticas e polícias nacionais e estaduais, numa ação coordenada. Porém, os analistas ouvidos pela reportagem ressaltam que a linha de frente é a fiscalização ambiental, que se apresenta na ponta como a primeira resistência aos crimes na floresta.
"O afrouxamento da fiscalização é um incentivo a criminosos porque vai se criando brechas. É quase uma oficialização da ilegalidade. Além disso, é preciso garantir mais poder coercitivo aos órgãos administrativos para que, diante de algo constatado, possam agilizar a indisponibilidade dos bens e recursos dos envolvidos", defendeu o promotor Fábio Bechara.
O representante do Ministério Público também apontou a necessidade de se estabelecer exigências e certos obstáculos à criação de empresas que visam explorar recursos naturais em áreas ambientalmente sensíveis, garantindo ao agente público meios de identificar possíveis laranjas. "Muitas vezes você vai multar e aquela empresa não tem um tostão, é de fachada para encobrir os reais responsáveis. Acho que nesses casos o ônus de provar intenções e origem é da empresa, e não do Estado".
Expansão da criminalidade
O analista David Marques concorda que o desmonte do trabalho de fiscalização é a porta de entrada para a expansão da criminalidade, já que reduz a presença do poder público. "Foram quatro anos em que o foco do governo federal não foi o combate a crimes ambientais na região. Houve um problema de desestruturação do Ibama, também do ICMBio. E o desafio grande é assegurar a presença estatal ali. Além disso, órgãos federais precisam trabalhar de forma integrada entre si e com órgãos estaduais".
O documento apresentado pelo Fórum Nacional de Segurança Pública faz um apelo para que autoridades e sociedade deixem de lado a rivalidade política, numa polarização que ainda persiste, para se priorizar ações efetivas em prol da Amazônia e dos povos indígenas.
"Pautas da segurança pública, controle do crime, redução da violência e ampliação da cidadania não são pautas de esquerda e/ou de direita; não são pautas só de governo. São pautas civilizatórias, e exigem um compromisso em torno da agenda socioambiental, que alie segurança e soberania com a discussão sobre formas inclusivas e sustentáveis de fazer da Amazônia o principal ativo geopolítico e estratégico do Brasil em um mundo multipolar e instável."
A presença de grupos criminosos nacionalmente conhecidos pelo controle do tráfico e domínio de presídios reacende a discussão sobre a capacidade do país em combater crimes ambientais e manter a floresta de pé. Além disso, a mata avança além das fronteiras nacionais. No governo prevalece a defesa de que a ajuda financeira estrangeira é imperial para se levar adiante políticas de desenvolvimento regional e ações de combate ao desmatamento, mas que a soberania da região é do país.
"Pode e deve haver ações conjuntas entre os países. De maneira colaborativa. Porque eu não acredito em ações top down, de fora para dentro, que no momento parece muita coisa, mas têm efeito com prazo de validade. O desafio é pensar um modelo de governança transnacional entre os países afetados diretamente para vigiar, detectar e agir", afirmou Fábio Bechara.
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