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Jamil Chade

Emails abrem crise e revelam que Suécia considerou imunidade de rebanho

Suécia não adotou medidas obrigatórias de distanciamento social como fizeram seus países vizinhos - Getty Images
Suécia não adotou medidas obrigatórias de distanciamento social como fizeram seus países vizinhos Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

20/08/2020 18h55

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Email inválido

A autoridade sueca responsável pela estratégia para lidar com a covid-19 é alvo de polêmica depois que seus emails internos foram publicados por jornalistas locais. Neles, existem indícios de que os responsáveis avaliaram a possibilidade de criar uma "imunidade de rebanho" na população como forma de lidar com o vírus.

A Suécia optou por não estabelecer um confinamento, o que levou a um elevado número de casos, fechamento das fronteiras com os vizinhos e um número superior de mortes em comparação aos demais países escandinavos. O governo brasileiro chegou a elogiar a estratégia.

Nos emails, porém, o chefe dos epidemiologistas do país, Anders Tegnell, aparece fazendo uma espécie de consideração sobre a validade de uma imunidade de rebanho. Na OMS, tal estratégia é considerada como inviável e moralmente questionável diante do número de mortes que poderia gerar.

A imunidade de rebanho é o termo usado para designar uma situação em que uma população acaba imunizada em 70%, seja por uma vacina ou pela proliferação do vírus. O resultado poderia ser a queda no ritmo do contágio pela doença. Mas, sem uma vacina, tal tática significaria eventualmente que uma parte da população não sobreviveria.

Os emails foram obtidos por meio da lei de liberdade de informação do país e publicadas pelo jornalista Emanuel Karlsten.

Num desses emails de março, Tegnell troca mensagens com o especialista Johan Giesecke, seu antecessor no cargo de epidemiologista chefe.

"Acredito que o vírus vai varrer como uma tempestade sobre a Suécia e infectar basicamente todos em um ou dois meses", escreveu Giesecke. "Acredito que milhares já estão infectados na Suécia. Tudo chegará ao fim quando tantos tiverem sido infectados e ficarem, portanto, imunes que o vírus não tem para onde ir (a chamada imunidade do rebanho)", completa.

Alguns dias depois, era Tegnell quem tocava no assunto: "certamente tem que ser o caso que à medida que a imunidade aumenta na população, a taxa de propagação da doença diminui", escreveu. "Portanto, obviamente não é o caso de que quando se chega à imunidade do rebanho, tudo pára de repente". Existe uma maneira de modelar como a propagação para"? questionou.

Com 83 mil casos e 5,7 mil mortes, a Suécia acabou tendo um número bem mais elevado que seus vizinhos. Mas abaixo de países como Espanha e Itália, que adotaram um confinamento. Desde maio, o país tem conseguido manter um número relativamente baixo de novos casos diários.

Ainda assim, em junho, Tegnell fez um mea culpa. "Se voltássemos a encontrar a mesma doença, acho que nos contentaríamos em fazer algo entre o que a Suécia fez e o que o resto do mundo fez", disse. Os dados oficiais do país indicaram que, na primeira metade de 2020, a Suécia registrou o maior número de mortes em 150 anos. Foram 51,4 mil obtidos no país, com todas as causas incluídas. Só o ano de 1869 foi pior, quando a fome abateu sobre o país que, naquele momento, tinha menos da metade da população atual.

Vale a pena?

Outro sinal de que a imunidade de rebanho foi tratada por Tegnell é o email que ele enviou a Mika Salminen, o chefe da agência nacional de saúde da Finlândia. Nele, o sueco repassava um comentário de um médico que levantava a possibilidade de pessoas saudáveis fossem infectadas voluntariamente.

Além disso, ele mesmo indicava que tal caminho poderia ser por meio das escolas. "Um ponto seria manter as escolas abertas para alcançar a imunidade do rebanho mais rapidamente", escreveu Tegnell. O finlandês confirmou que tal opção havia sido avaliada. Mas que a escolha foi por rejeitar a estratégia, ja que ficou claro que os alunos também iriam contribuir para disseminar a doença.

Ao responder ao sueco, o finlandês explicou que fechar as escolas reduziria o contágio entre os idosos em 10%.

Mas é a resposta de Tegnell que abriu uma crise em Estocolmo:"10% pode valer a pena?".

Após a publicação dos emails, ele se defendeu e disse que aquelas considerações não eram projetos. Mas sim um debate sobre "possíveis efeitos". Mas sua frase abriu uma polêmica sobre a possibilidade de que ele pudesse estar sinalizando de que valeria a pena aumentar o risco para os mais idosos enquanto as escolas estivessem abertas.

Parte da população reagiu com duras críticas contra Tegnell, principalmente diante de suas declarações insistentes ao público e ao longo de meses de que a imunidade de rebanho não era uma opção.

Não contribuiu para sua reputação a informação por parte de outros jornais locais de que ele teria apagado vários e-mails entre janeiro a abril. "Eu apago muitos e-mails que não considero relevantes de uma forma que precisa ser registrada", explicou.

A Suécia optou por deixar as escolas abertas para todos os alunos até 16 anos de idade. Mas o governo garante que o debate de Tegnell não foi o que levou as autoridades a optar por esse caminho.