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Em vídeo inédito, Beira-Mar relata greve de fome e tortura em presídio

Herculano Barreto Filho

Do UOL, em São Paulo

13/09/2021 04h00

O traficante Luiz Fernando da Costa, conhecido como Fernandinho Beira-Mar, relatou ter feito greve de fome e ter ficado em isolamento por seis meses após a chegada ao presídio federal de Campo Grande (MS). As declarações estão em um vídeo obtido com exclusividade pelo UOL.

Em uma audiência de 50 minutos gravada por videoconferência em agosto deste ano, o criminoso apontado pelas autoridades como o chefão do CV (Comando Vermelho), facção criminosa do Rio de Janeiro, ainda disse sofrer com problemas psicológicos, admitiu enfrentar um "momento difícil na vida" e comparou tráfico com milícia: "Não sou igual miliciano, que exigia dinheiro de empresário. Fiz um trabalho social".

Transferido da penitenciária de Mossoró (RN) para Campo Grande em setembro de 2019, Beira-Mar disse ter permanecido por seis meses em uma cela isolada na unidade sob o pretexto de análise do seu perfil devido à hierarquia entre os outros internos.

Durante esse período, relatou não ter tido condições de estudar por causa da escassez de iluminação no local e se referiu ao episódio como "uma forma de tortura". As declarações foram dadas em audiência com o juiz-corregedor federal Dalton Igor Kita Conrado.

Esse tipo de denúncia não é novidade. Após a morte do traficante Elias Maluco, encontrado morto com sinais de enforcamento na própria cela na penitenciária de Catanduvas (PR) em setembro de 2020, a OEA (Organização dos Estados Americanos) tornou pública a cobrança por providências do governo brasileiro em petição classificada como "tortura e pena cruel" devido à situação de detentos há mais de dez anos em presídios federais.

Quando cheguei aqui [ao presídio de Campo Grande], fui mantido isolado em uma espécie de VPI [Verificação Preliminar de Informação] administrativo. Alegaram me deixar isolado por um tempo desse para analisar o meu perfil. É impossível, porque estou há 14 anos [no sistema prisional federal]. Eles conhecem o meu perfil. Eu entendo isso como uma forma de tortura"
Fernandinho Beira-Mar, em audiência

"Aí a direção responde: 'O preso não tem que escolher'. Não quero escolher. Só quero ter o direito de ter um ambiente salubre para eu poder ler, poder estudar. Estava numa cela escura, sem condição de leitura", completa o traficante, que irá apresentar, no Congresso Internacional de Direitos Humanos de Coimbra, em Portugal, entre 12 e 14 de outubro, um artigo comparando a situação dos presídios federais à crucificação de Jesus Cristo.

Beira-Mar ainda se queixa do tratamento dispensado aos defensores dos internos. "Eles tratam advogados aqui nessa penitenciária como se eles fossem cúmplices de bandido". E ainda traça um paralelo com a milícia, que estabelece um poder paralelo em algumas regiões do Rio de Janeiro. "Não sou igual miliciano, que exigia dinheiro de empresário. Fiz um trabalho social".

Fernandinho Beira-Mar - Reprodução - Reprodução
Fernandinho Beira-Mar durante audiência na Justiça
Imagem: Reprodução

Protesto com greve de fome de 19 dias

Beira-Mar ainda relatou ter ficado por 19 dias sem se alimentar até agosto do ano passado em protesto pelos quatro meses sem assistência jurídica em meio à pandemia do coronavírus. Durante o período sem contato com os seus advogados, o traficante disse ter respondido a cerca de dez procedimentos disciplinares.

"Sou contra a greve de fome, porque não acho que esse é o caminho. Fiquei em greve de fome para tentar atendimento com o meu advogado. Só depois disso, consegui".

Em meio à recuperação após ficar sem comer, o traficante disse ter sido vítima de abuso de autoridade supostamente cometido por um servidor do presídio. "Estava no setor de enfermaria, sendo atendido (...). Ele me humilhou. Ele exigiu que eu abaixasse a cabeça. Deitado em uma cama, sem conseguir andar. Ele me humilhou. Gritou comigo, fez vários tipos de procedimento", acusa.

Em seguida, disse ter comunicado o episódio à OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).

Perseguição e problemas psicológicos

Beira-Mar relatou ainda ser alvo de perseguição no sistema prisional federal por fazer denúncias. Em duas ocasiões, o traficante chegou a ser advertido pelo tom de voz usado na audiência.

"Muitas vezes, as pessoas têm o entendimento de que eu sou meio arrogante. É que o meu tom de voz, o meu jeito de falar... É que eu brigo pelos meus direitos", relata.

"Poucos presos têm coragem de falar o que estou falando para o senhor [juiz-corregedor]. Porque eles têm medo de represália. Fica nítido, no meu ponto de vista, que é perseguição".

Há modus operandi nesse sistema para perseguir esse preso que não aceita opressão e covardia. Como é que eles fazem? Eles forjam procedimento de calúnia. Para que o preso fique desacreditado e isolado. Conheço muitos agentes que abusam do poder e cometem crime"
Fernandinho Beira-Mar, em audiência

O traficante contudo reconheceu sofrer com problemas psicológicos e ainda solicitou por atendimentos médicos particulares. "Estou passando por um momento muito difícil na minha vida. Estou psicologicamente abalado. Desde que cheguei aqui, pedi tratamento com psiquiatra particular".

"Vou analisar todos os pedidos e ver o que não foi decidido, o que precisa instruir. É isso, né? Vamos aguardar", responde o juiz-corregedor Dalton Igor Kita Conrado no término da audiência.

Com as mãos algemadas para trás, Beira-Mar se levanta e é levado por um servidor para fora da sala onde foi gravada a audiência.

O que dizem a defesa de Beira-Mar e o Depen

Procurada pelo UOL, a advogada Paloma Gurgel, que representa o traficante, confirmou a versão apresentada pelo detento.

"[Fernandinho Beira-Mar] relatou torturas, tratamento desumano e maus tratos. Ficou claro o tratamento ilegal, em forma de perseguição. Ele fez greve de fome para ser notado e ouvido", disse.

Segundo a defensora, o relato não surtiu efeito. "Ele continua nessa situação de clemência, aguardando uma resposta do Judiciário para que sejam sanadas tais ilegalidades, inadmissíveis em qualquer estado democrático de direito", completou.

Em nota, o Depen (Departamento Penitenciário Nacional) disse que as denúncias apresentadas por Fernandinho Beira-Mar são "improcedentes".

O órgão negou os relatos de tratamento inadequado e afirmou atender as necessidades básicas dos custodiados com base na Lei de Execução Penal para "ofertar oportunidades para melhorar a capacidade de reintegração na sociedade".