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Polícia quis desqualificar testemunhas ouvidas pelo MP no caso Jacarezinho

6.mai.2021 - Quarto em que um homem foi morto em ação policial no Jacarezinho - Joel Luiz Costa/Reprodução
6.mai.2021 - Quarto em que um homem foi morto em ação policial no Jacarezinho Imagem: Joel Luiz Costa/Reprodução

Ruben Berta

Do UOL, no Rio

04/11/2021 04h00

O inquérito da Polícia Civil que apurava a morte de Omar Pereira da Silva, 21, durante uma operação na favela do Jacarezinho, em maio deste ano, tentou desqualificar os depoimentos de testemunhas ouvidas pela força-tarefa do Ministério Público para apurar o caso.

O MP vem realizando investigações independentes para apurar as 28 mortes ocorridas na operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro. A primeira denúncia dos promotores, contra dois policiais civis envolvidos na morte de Omar, foi aceita pela juíza Elizabeth Louro, da 2ª Vara Criminal, no mês passado. Na mesma decisão, a magistrada determinou a suspensão do inquérito da DHC (Delegacia de Homicídios da Capital) por entender que ele não poderia continuar existindo em paralelo.

O relatório do inquérito, assinado pelo delegado adjunto da DHC Cassiano dos Santos Conte, colocou em dúvida os depoimentos de quatro pessoas que estavam na casa onde Omar foi morto. Foram postos em xeque inclusive os relatos de um casal que estava na residência com a filha de apenas 9 anos.

Procurada pelo UOL, a assessoria de imprensa da Polícia Civil enviou nota afirmando que "não há questionamento (das testemunhas ouvidas pelo MP), e sim a checagem da versão de testemunhas com o local do fato e com outras versões apresentadas, diligência básica de qualquer investigação na busca da verdade". "No relatório da Polícia Civil, há solicitação de novo prazo para encerramento das investigações, independente da conclusão da investigação paralela pela parte acusatória", conclui.

O Ministério Público não se manifestou até a publicação da reportagem.

As testemunhas ouvidas pelo MP foram unânimes em afirmar que o jovem não estava armado quando foi baleado por um dos policiais.

"Muito embora as testemunhas ouvidas [pelo MP] afirmem que Omar estava desarmado, é evidente que elas não seriam livres e isentas para declarar o contrário, seja por temerem o tráfico, seja para preservarem a reputação e conduta do opositor. Ao contrário, e pelos mesmos motivos, todas as vezes em que as testemunhas se referem à abordagem e à ação policial, percebe-se forte tendência em deslegitimá-la", afirma o relatório da Polícia Civil.

Os depoimentos das pessoas que estavam na casa foram um dos pontos chaves para que os promotores da força-tarefa denunciassem os policiais civis da Core (Coordenadoria de Recursos Especiais) Douglas de Lucena Peixoto Siqueira e Anderson Silveira Pereira.

Siqueira —que atirou em Omar— se tornou réu por homicídio qualificado e fraude processual. Já Pereira responde por fraude processual na ação que tramita na 2ª Vara Criminal.

O MP afirma que os agentes teriam plantado uma granada na cena da ação e apresentado uma pistola na delegacia, alegando falsamente que elas estavam com o jovem morto. Os policiais sustentam a tese de legítima defesa ao afirmar que Omar apontou a arma na direção deles antes de ser baleado.

Só uma testemunha da favela

Além de questionar os depoimentos colhidos pelo MP, a Delegacia de Homicídios relata ter ouvido como testemunha, durante suas investigações, apenas uma moradora do Jacarezinho. Foi uma parente de Omar, cujo depoimento foi colhido no IML (Instituto Médico Legal), no dia seguinte da operação.

A familiar confirmou que o rapaz era integrante do tráfico de drogas na favela. Ela não estava presente na casa onde o jovem foi morto.

As outras pessoas citadas no relatório pela DHC, além de Siqueira e Pereira, foram três policiais que participaram da operação no Jacarezinho como motoristas de carros blindados utilizados pela corporação para circular pela favela. Nenhum estava na casa. Eles falaram principalmente sobre a dificuldade de circulação durante os confrontos.

O relatório descreve o depoimento de Douglas Siqueira, policial da Core, que disse que, após uma troca de tiros num beco, perseguiu Omar até uma residência. "Então, avistou o traficante, dentro desse quarto, empunhando uma pistola em sua direção" e "para se defender da injusta agressão efetuou disparos com o fuzil que portava".

Anderson Pereira "confirmou em suas declarações a versão apresentada pelo policial Douglas", acrescentou o inquérito.

Por outro lado, a Polícia Civil dedicou boa parte do relatório para explorar divergências entre os relatos das testemunhas que prestaram depoimento aos promotores.

Um dos pontos, por exemplo, foi o fato de que duas pessoas que estavam na casa disseram não ter visto Omar com um celular durante o período em que ele esteve no imóvel, enquanto as outras relataram que ele portava um aparelho. A última versão foi confirmada por mais duas pessoas que não estavam no imóvel e contaram ter feito chamada de vídeo com o jovem.

O inquérito também explora uma suposta proximidade entre os moradores da casa e o jovem morto para que os depoimentos fossem colocados em dúvida: "É possível verificar pela análise conjunta das declarações que todos que estavam na casa se conheciam bem, com alto grau de convívio e relacionamento, ao contrário do que disseram os moradores do imóvel".

Família mostra quarto onde homem foi morto em ação policial no Jacarezinho

Família mostra quarto onde homem foi morto em ação policial no Jacarezinho

Histórico das testemunhas

Outra linha da investigação foi explorar o fato de que as duas testemunhas que estavam na residência além do casal tinham passagem pela polícia. Uma delas foi presa por estar com mandado de prisão em aberto.

O outro jovem que depôs ao MP, segundo o inquérito da Polícia Civil, tinha, em sua ficha, registros de crimes análogos à associação para o tráfico, desacato e desobediência como menor de idade.

"Portanto, as declarações das testemunhas devem ser valoradas com as ressalvas mencionadas, sejam [sic] porque carecem de credibilidade, por serem parciais em favor do opositor, sejam [sic] porque contêm alto grau de contradições relevantes, sejam [sic] porque, em sua maioria, são incompatíveis com as provas técnicas", conclui o relatório.

Ao citar a perícia realizada pela Polícia Civil, o inquérito aponta que os laudos de exame de necropsia e do local da morte de Omar são "inteiramente compatíveis" com a dinâmica relatada pelo policial Douglas Siqueira, que matou o jovem.

Por sua vez, um dos pontos abordados pelo Ministério Público na denúncia que foi aceita pela Justiça foi o fato de o local não ter sido preservado adequadamente para a realização de perícia.

Ainda assim, um laudo independente encomendado pelo MP concluiu que Omar foi atingido à queima-roupa, conforme revelou reportagem do UOL.

Inquérito sem conclusão

O relatório encaminhado à Justiça pela Delegacia de Homicídios não aponta nenhuma conclusão definitiva sobre as circunstâncias da morte de Omar. Apesar de o MP ter ouvido todas as testemunhas que estavam na casa —com exceção da menina de 9 anos—, o relatório pede para que sejam colhidos novos depoimentos.

"Esta autoridade policial entende que com os elementos produzidos até o momento não é possível determinar com exatidão os fatos ocorridos dentro do imóvel, em razão das divergências das informações prestadas e das discrepâncias existentes entres estas e as provas técnicas. Assim sendo, a autoridade policial signatária pugna pela continuidade das investigações com escopo na oitiva de outras testemunhas que, ao que tudo indica, estavam no local e puderam ver ou ouvir o que ali aconteceu."

Como aceitou a denúncia da força-tarefa do MP, a juíza Elizabeth Louro concordou com a tese dos promotores de que não seria possível a Polícia Civil dar continuidade ao inquérito em paralelo.

A decisão dando 24 horas para que o inquérito da DHC fosse encerrado e anexado ao processo que trata da denúncia do MP foi de 18 de outubro. Mas o documento só foi incluído no sistema do Tribunal de Justiça no dia 29.

Os dois policiais réus foram afastados das funções nas ruas e estão prestando serviços administrativos. Eles estão proibidos de frequentar o Jacarezinho ou ter contato com moradores da favela.

Ao pedir o afastamento, aceito pela Justiça, os promotores citaram razões de "ordem pública" para "prevenir o aliciamento ou intimidação de testemunhas e o estímulo a incursões no interior de residências familiares para executar criminosos ao invés de submetê-los ao Estado-Juiz".

O Ministério Público ainda investiga oficialmente outros dois agentes, mas não houve até o momento elementos suficientes para que fosse oferecida denúncia à Justiça.

As apurações seguem em andamento em relação a outros 20 policiais envolvidos nos confrontos. Os promotores realizaram nos últimos meses um intenso trabalho de levantamento de possíveis testemunhas: 115 foram contatadas, mas apenas 44 se dispuseram a dar depoimentos.