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Médico e cliente reafirmam à CPI fraudes e pressão por kit covid na Prevent

Hanrrikson de Andrade, Luciana Amaral e Thais Augusto

Do UOL, em Brasília e em São Paulo

07/10/2021 04h00Atualizada em 07/10/2021 18h32

Em depoimento à CPI da Covid hoje, um ex-médico da Prevent Senior e um cliente da operadora de saúde relataram supostas fraudes praticadas pela Prevent Senior e reafirmaram suspeitas contra a empresa. Eles ainda confirmaram pressão pelo uso do kit covid, formado por medicamentos sem eficácia comprovada contra a covid-19, em pacientes.

O médico Walter Correa de Souza Neto, ex-funcionário da Prevent, e o advogado Tadeu Frederico Andrade, ex-paciente com covid-19 da operadora de saúde, depuseram à Comissão Parlamentar de Inquérito como forma de encerramento dos trabalhos de apuração sobre as suspeitas que cercam a empresa. As informações de cada um complementaram a fala do outro ao longo da oitiva.

Segundo Souza Neto, os médicos da Prevent recebiam ordens e eram pressionados pela empresa para prescrever medicamentos do chamado kit covid, como cloroquina e ivermectina, que não têm eficácia comprovada contra a covid-19, embora os profissionais soubessem que se tratava de uma "fraude".

"No começo, existia ainda uma esperança. Essa coisa que foi citada de que os pacientes... "Ninguém vai a óbito, ninguém intuba." Isso já era muito claro, a gente sabia que era fraude. [...] Eles estão dizendo que os pacientes estão... na mídia, que não houve ninguém intubado, mas, não, eu internava pacientes que haviam tomado o kit, acompanhava esses pacientes depois pelo prontuário durante a internação e via esses pacientes internarem, irem a óbito, e acontecia a mesma coisa. Então, a gente sabia que não era", declarou.

"Eu não fazia isso [de prescrever] fora da Prevent, mas, na Prevent, eu chegava a fazer e avisava sempre os pacientes de que não havia evidência, que aquele era um protocolo institucional, que, muitas vezes... Especialmente, quanto mais o tempo foi passando e mais a evidência foi se consolidando, a recomendação, muitas vezes, era pra não... Todas as vezes, era pra não utilizar a medicação. Muitas vezes: 'Utiliza só as vitaminas'. Porque vinham as vitaminas junto com o kit", acrescentou, em outro momento.

O médico ainda afirmou que havia pressão gerada pela "cultura" da Prevent para que se adotasse o tratamento paliativo mesmo quando algum profissional acreditava que o paciente tinha condições de ser tratado.

"Muitas vezes, no pronto atendimento, quando você estava internando um paciente, você já era pressionado por aquele médico que era o guardião, o chefe do plantão: 'E aí, você já paliou esse paciente? Você já...'. 'Não, mas eu acho que ele é...' 'Não, eu não acho que ele é viável, você não vai pedir UTI, é enfermaria porque nós já vamos paliar, conversa com a família, conversa com a família e já coloca ele no paliativo.'
Então, assim, você era pressionado para fazer esse tipo de coisa, porque essa era uma forma de gerir os recursos."

A paliação é uma abordagem que visa colocar o paciente com uma doença incurável no cerne do cuidado e diminuir o seu sofrimento, respeitando até o último momento os seus desejos e a sua individualidade. Ou seja, é um conjunto de práticas de assistência recomendada a pessoas que se encontram em fase terminal e irreversível.

07.out.21 - Médico Walter Correa de Souza Neto, ex-funcionário da Prevent Senior, e paciente da operadora de saúde, Tadeu Frederico Andrade - Pedro França/Agência Senado - Pedro França/Agência Senado
07.out.21 - Médico Walter Correa de Souza Neto, ex-funcionário da Prevent Senior, e paciente da operadora de saúde, Tadeu Frederico Andrade
Imagem: Pedro França/Agência Senado

Especialista em números, não em pessoas

Para Souza Neto, a operadora era especialista em números, e não em pessoas. O médico também disse ter sido repreendido por se recusar a prescrever o "kit covid".

A Prevent, até pouco tempo, usava no comercial deles que são especialistas em pessoas, mas eu sempre via a Prevent especialista em números."
Médico Walter Correa de Souza Neto, ex-funcionário da Prevent

Souza Neto declarou que não são exclusivos da pandemia casos como o de Tadeu Frederico Andrade, que diz ter recebido orientação de médicos da Prevent para tomar cloroquina antes de receber o diagnóstico positivo para covid-19.

Andrade também relatou que médicos da Prevent quiseram determinar que ele passasse ao tratamento paliativo e só teriam voltado atrás após a família resistir e ameaçar entrar na Justiça.

"Eles, minha família, não aceitaram a imposição dos chamados cuidados paliativos, que era a prática utilizada pela Prevent Senior para eliminar pacientes de alto custo. [...] A primeira vez em que eu ouvi o termo cuidados paliativos foi nessa CPI e foi na fala do senhor, senador Otto Alencar, ao inquirir o Pedro Benedito Batista Júnior, o diretor médico da Prevent Senior. A partir desse dia, fui incentivado pelo senhor a dar publicidade e a denunciar o que aconteceu comigo e com a minha família. Sou uma testemunha viva da política criminosa dessa corporação e de seus dirigentes", afirmou.

Sem autonomia

O médico Souza Neto afirmou ainda que não havia autonomia médica na operadora. Segundo ele, no início da pandemia, havia ordens para que os profissionais não usassem máscara de proteção contra a covid-19.

Em setembro, durante depoimento na CPI da Covid, o diretor da Prevent Senior, Pedro Benedito Batista Júnior, afirmou que os médicos tinham autonomia para tomar decisões, inclusive a de não prescrever o chamado "kit covid", composto por medicamentos sem eficácia comprovada contra o vírus. O médico hoje negou.

"[A Prevent] nunca respeitou. Eu tive até que tirar a máscara, não tive o direito nem de me proteger. É o cúmulo da falta de autonomia", afirmou aos senadores.

Segundo o médico, a Prevent começou a adotar os medicamentos do "kit covid" entre o final de março e o início de abril de 2020. "Eles instituíram um protocolo institucional e iniciou a determinação para que a gente prescrevesse essa medicação".

Souza Neto comparou a hierarquia rígida da Prevent Senior com a Polícia Civil e o Corpo de Bombeiros, onde atuou. "Era um ambiente hostil, com a questão de lealdade e obediência. Fui bombeiro militar por quatro meses, experimentei o militarismo, fui policial civil por dez anos. Não havia nessas instituições, mesmo numa instituição militar, uma hierarquia tão rígida quanto acontecia na Prevent, que era, muitas vezes, uma hierarquia baseada até em assédio moral".

Então, você se voltar contra qualquer orientação do seu superior significaria represálias importantes, talvez perder o seu trabalho. A gente vivia num ambiente assim em que todas as pessoas ficavam muito receosas de contrariar qualquer orientação."
Médico Walter Correa de Souza Neto, ex-funcionário da Prevent

Denúncias

A Prevent Senior é investigada pela CPI da Covid por supostas irregularidades cometidas durante a pandemia.

Um grupo de 12 médicos e ex-médicos da Prevent apresentou um dossiê com informações que apontam infrações cometidas pela empresa. Souza Neto confirmou que ajudou a compor o material.

A advogada dos denunciantes, Bruna Morato, já foi ouvida na CPI. Segundo ela, a Prevent implementou uma política interna de "coerção", e os profissionais de saúde acabaram receitando o chamado "kit covid" por medo de sofrerem retaliações, inclusive demissão.

Em depoimento na CPI, Bruna também contou que a Prevent se aproximou do governo federal para defender o tratamento com medicamentos ineficazes contra a covid-19.

Relato de paciente da Prevent com covid-19

Tadeu Frederico Andrade afirmou que esteve perto de ser encaminhado para a ala de cuidados paliativos durante o período de 120 dias de internação em uma UTI da operadora de saúde em razão de consequências do coronavírus.

Na versão dele, isso só não ocorreu porque a família resistiu à orientação de uma médica da empresa e ameaçou levar o caso à Justiça e à imprensa.

Segundo Andrade, ele estava intubado em decorrência de uma pneumonia bacteriana, sequela da covid-19, há aproximadamente 30 dias, na ocasião em que uma médica da Prevent recomendou colocá-lo em cuidados paliativos. O contato foi realizado com a filha do paciente, que prontamente teria recusado a sugestão, de acordo com o depoente.

"Ela informou que eu passaria a ter os cuidados paliativos, ou seja, eu sairia da UTI [Unidade de Terapia Intensiva], iria para um chamado leito híbrido", destacou. "Lá teria maior dignidade e conforto, e meu óbito ocorreria em poucos dias", completou Andrade, relatando o que teria sido dito pela médica.

"Seria ministrada em mim uma bomba de morfina, e todos os meus equipamentos de sobrevivência na UTI seriam desligados. Inclusive, se eu tivesse alguma parada cardíaca, teria recomendação para não haver reanimação."

O depoente relatou que, no mesmo dia do telefonema para a filha, a médica teria então mentido no prontuário e observado o encaminhado aos cuidados paliativos com suposto consentimento. "Isso é mentira, minha família não concordou."

Caso Andrade tivesse passado a um leito híbrido a fim de receber cuidados paliativos, ele deixaria de fazer hemodiálise —fundamental para manter a atividade renal— e não receberia mais antibióticos, entre outros procedimentos. Sem a assistência intensiva, de fato, ele teria morrido, na avaliação de senadores da CPI que são formados em medicina.

"Teria sido assassinado", concluiu Rogério Carvalho (PT-SE), médico sanitarista e membro do bloco de oposição ao governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

O depoente afirmou que houve insistência por parte da Prevent para que ele deixasse a UTI, com base no diagnóstico feito pela médica a partir de um prontuário de outra pessoa.

Eles tentam convencer minha família de que, pelo prontuário, eu tinha marcapasso, tinha sérias comorbidades, problemas arteriais e que eu tinha idade muito avançada. Mas o prontuário não era meu, era de uma senhora de 75 anos. Eu não tenho marcapasso, tenho pressão alta, é a única coisa que sempre tive."
Tadeu Frederico Andrade, paciente da Prevent Senior

Andrade contou que a equipe do hospital da Prevent recuou depois que a família ameaçou levar o caso à Justiça e à imprensa.

"Minha família não concorda com o início dos cuidados paliativos, se insurge, ameaça ir à Justiça para buscar uma liminar para impedir que eu saia da UTI e ameaça procurar a mídia. Nesse momento, a Prevent recua e cancela o início do tratamento paliativo, ou seja, eu, em poucos dias, estaria... Eu estaria vindo a óbito e hoje eu estou aqui."

O depoente afirmou que seus filhos precisaram contratar um médico particular a fim de oferecer uma segunda análise e mostrar que ele não se encaixava no quadro de paciente em fase terminal. Disse ainda que, após deixar a UTI, em abril de 2021, recuperou-se normalmente em casa e não apresenta sequelas pós-contaminação.

Questionado por senadores sobre o argumento usado pelos médicos, Andrade contou que eles diziam que o caso não tinha mais solução. "Que eu estava com rins e pulmões comprometidos e que, eventualmente, se eu sobrevivesse, seria um paciente com problemas renais crônicos e respiratórios também. No entanto, meus últimos exames mostram que os pulmões e rins estão ótimos".

Durante o depoimento, a Prevent Senior divulgou uma nota por meio da qual negou ter iniciado o tratamento paliativo sem autorização da família.

"Já tornado público via imprensa, o prontuário do paciente é taxativo: uma médica sugeriu, dada a piora do paciente, a adoção de cuidados paliativos. Conversou com uma de suas filhas por volta de meio-dia do dia 30 de janeiro. No entanto, ele não foi iniciado, por discordância da família, diferentemente do que o senhor Tadeu afirmou à CPI."

"Frise-se: a médica fez uma sugestão, não determinação. O paciente recebeu e continua recebendo todo o suporte necessário para superar a doença e sequelas."

Kit covid entregue por motoboy

Tadeu Frederico Andrade declarou ter recebido o "kit covid" da Prevent Senior, conjunto de remédios como cloroquina, ivermectina e outros sem eficácia no tratamento da doença, antes mesmo de realizar a testagem. Segundo ele, houve apenas uma consulta por telemedicina. Logo em seguida, ele recebeu os medicamentos em casa, por motoboy.

"Eu tive o primeiro contato, durante o período da pandemia, através de uma médica, por telemedicina, quando eu estava com os primeiros sintomas do covid, ou seja, febre e dor no corpo. Isso foi no dia 24 de dezembro [de 2020], os primeiros sintomas. No dia 25, eu, em contato com o aplicativo que a Prevent Senior tinha disponibilizado, da teleconsulta, eu fiz uma consulta com essa médica, que durou menos de dez minutos, na qual eu relatei que estava com febre e cor no corpo", relatou.

"Ela disse, então, que mandaria algum medicamento para a minha residência, que, quando eu recebi, verifiquei que era hidroxicloroquina, ivermectina e todo aquele chamado kit covid. Foi enviado por um motoboy. Comecei a tomar, não tinha o que contestar. Eu estava sendo orientado por uma médica. Comecei a tomar, e o tratamento duraria cinco dias. Acontece que eu não melhorei, eu piorei."

Andrade realizou o teste PCR somente após tomar os remédios. "Ou seja, eu comecei a ser medicado por uma teleconsulta, sem saber o que eu tinha. Eu tive o resultado positivo, já estava terminando esse tratamento de cinco dias; e eu estava piorando."

Em 30 de dezembro, com o quadro clínico em agravamento, Andrade retornou ao hospital da Prevent Senior e realizou um novo exame, cujo resultado saiu na hora e confirmou a infecção. Na ocasião, ele já apresentava uma pneumonia bacteriana em estágio avançado.

A CPI da Covid foi criada no Senado após determinação do Supremo. A comissão, formada por 11 senadores (maioria era independente ou de oposição), investigou ações e omissões do governo Bolsonaro na pandemia do coronavírus e repasses federais a estados e municípios. Teve duração de seis meses. Seu relatório final foi enviado ao Ministério Público para eventuais criminalizações.