Se Benze que Dá: Bloco de Marielle Franco derruba fronteiras invisíveis
Ao longo da primeira década deste século, o Carnaval do Rio de Janeiro sofreu uma renovação, se por um lado a passarela do samba atraía turistas de todo canto do planeta, as ruas da cidade ficavam vazias pois todo mundo metia o pé para a serra ou a região dos lagos.
Foi quando de forma descontraída e desconstruída blocos e fanfarras passaram a ocupar a cidade, dando gênese ao maior Carnaval de rua do planeta. Posto hoje provavelmente perdido para são Paulo, mas só porque lá tem mais gente e a crise econômica deixou eles sem grana pra vir pra cá ou para Bahia. Sem devanear mais, este texto é sobre 2005, quando uma galera que fazia parte de um curso pré-vestibular do complexo da Maré voltava animadão de um bloco da zona sul, de busão claro.
Contestando o fato de ter de se deslocar para tão longe para pular o Carnaval, tiveram a ideia de criar seu próprio bloco na Maré mesmo. Faziam parte desse bonde Renata Souza, eleita deputada estadual em 2018, e Marielle Franco, vereadora eleita em 2016, assassinada em 2018. Se Benze que Dá foi o nome escolhido pro bloco, com a premissa de ser um instrumento de diversão sem alienação e pelo direito de ir e vir.
O complexo da Maré compreende, pelo menos, 140 mil pessoas entre duas principais vias de acesso entre a zona norte e o centro da cidade. São 16 comunidades divididas por fronteiras geográficas e outras invisíveis, delimitadas pelas facções criminosas que disputam o varejo da droga. É difícil para quem é de fora compreender, mas cruzar de um lado para outro não é uma tarefa fácil, sobretudo pra juventude e trafegar entre essas barreiras sempre foi uma das principais bandeiras do bloco.
A concentração do Se Benze que Dá deste ano foi marcada pras 13h no Bar Lilás, em frente a casa de Renata Souza, um macarrão com salsicha era servido pra galera, que chegou cedo para executar as atividade de concentração: imprimir com stêncil o nome do bloco nas camisetas, confeccionar cartazes e maquiar a galera, sempre nas cores verde, laranja e preto.
"A lenda fala que o laranja vem da cor do pôr do sol na Maré, o verde da esperança e o preto do luto que vira luta", mas a verdade é que "foi tudo uma questão de gosto de quem tava lá no início", conta Leo J. Melo, fundador do bloco e compositor da maioria das suas marchinhas. "Dandara, Claudia, Amarildo e Marielle/ Não por acaso preta é a cor da pele/ Meus heróis não só morreram de overdose/ O seu mito fake news estratégia de hipnose" canta o refrão do samba deste ano.
Durante o aquecimento, o bar bombava de vender cerveja litrão a R$ 9 e "cracudinha" (nome dado a garrafinha retornável de 300ml) por R$ 3. Na caixa de som, hits dos anos 90 como "Garota Nacional", revezavam com samba-enredos e aquelas marchinhas de Carnaval muito problematizadas e banidas de alguns circuitos. Motos, burros sem rabo e crianças ziguezagueavam naquela rua de poucos metros de largura, a medida que foliões, músicos e fotógrafos, vários deles, iam se somando à concentração.
O bloco saiu com uns 50 membros e mais uns 20 fotógrafos, não à toa, afinal a Maré tem uma tradição na fotografia, colecionando vários projetos e vários prêmios de fotojornalismo.
Por onde o bloco passava, arrancava sorrisos, aplausos e muitas selfies de moradores que na pista ou de cima dos três andares de laje curtiam, mas não seguiam o cortejo. Seria um bloco algo tão alienígena assim? O jovem periférico carioca de hoje é mais Cartola, Mano Brown ou Mr Catra? Ferrugem, BK ou Rennan da Penha? Para a Renata Souza a questão é mais geográfica "muita gente curte, mas tem receito de acompanhar o cortejo porque ele atravessa vários territórios".
O bloco atravessa a "rua principal" da Nova Holanda, com seus muitos comércios, lojinhas com manequins de bunda virada pra rua e roupa justa, barbearias, hamburguerias, lojas de tatuagens, veterinárias, pet shops, fliperamas, muitos bares e muitos salões de beleza. Finalmente o bloco chega ao morro do Timbau, a única parte alta da favela, com vista pra igreja da Penha, e a cervejaria artesanal "Roça".
Depois de cruzar toda a favela, seus territórios e facções, Renata, que carrega o estandarte, é enfática: "O que a gente faz é mais um bloco manifestação, a gente sai como bloco e chamando as pessoas pra virem porque ele nasce dessa ideia de ultrapassar as barreiras, afinal não dá pra legitimar essa separação que o varejo da droga faz. Neste ano, nós começamos na Nova Holanda e terminamos no morro do Timbau, passando por pelo menos duas barreiras colocadas por diferentes grupos do varejo da droga, então a gente costuma fazer isso, sai e vai brincando, com alegria, chamando os moradores pra virem".
Durante o cortejo, um pequeno "zine" com as letras dos sambas deste ano e anteriores eram distribuídos. A dengue, o muro acústico que isola a favela do resto da cidade e e tem estampado criticas aos governos municipais, estaduais e federais (do Lula), aparece nessas letras que ao narrar a história da favela, tem muito a dizer da história da cidade e do país.
Para Leo J. Melo, o bloco não é partidário. "A gente entende como esse lugar plural e queremos estar na rua, ocupando a rua, e falando das questões da Maré. A Maré é um lugar marcado pelo abandono do Estado, ela tem essa ocupação que vem da década de 60 e de lá tudo que se conquistou na Maré foi fruto da luta social, então essa relação de critica com o governo sempre foi muito presente. Diversão, sim, mas sem alienação. Vamos ter noção da problemática que estamos vivendo."
O segundo desfile do bloco é no sábado de Carnaval, há pouco menos de uma semana do fatídico dia 14 de março, quando o assassinato de Marielle completa um ano, ainda sem solução clara.
"Muitas pessoas vieram falar com a gente este ano, se o bloco iria homenagear a Marielle. Pra gente isso é até meio estranho, mas não estamos fazendo nada muito diferente do que estávamos tentando fazer. A gente já saiu com ocupação militar, com tanque na rua, com tiroteio e com PM na rua", lembra Leo.
Para Renata Souza, "o bloco tem como raiz esse fundo da critica social que é muito importante, e a Marielle é uma das fundadoras do bloco, ela tocava tamborim, ela tava sempre ali na linha de frente, na primeira fila do bloco mesmo. Realmente o primeiro carnaval sem ela é dolorido."
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