Por questão trabalhista, bloco afro Ilê Aiyê pode perder sede em Salvador
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Resumo da notícia
- Fundado em 1974, o Ilê Aiyê foi o primeiro bloco afro de Salvador e levou as raízes africanas para a festa do Carnaval baiano
- O imóvel onde funciona a sede do bloco Ilê Aiyê foi penhorado para pagamento de dívida trabalhista de mais de R$ 300 mil
- Na sede, chamada Senzala do Barro Preto, ocorrem ensaios e funciona uma escola comunitária, cursos de dança, canto e percussão
Além da crise gerada pela pandemia do novo coronavírus, que provocou suspensão de shows e projetos especiais, o bloco afro Ilê Aiyê, fundado em 1974, enfrenta uma situação difícil: a possibilidade de perder a sede própria, localizada no bairro da Liberdade, em Salvador.
A Senzala do Barro Preto, como é chamada a sede, foi penhorada pela Justiça baiana por conta de um processo trabalhista movido por um ex-cantor do bloco.
A decisão judicial chegou à última instância, o Ilê Aiyê não pode mais recorrer e o valor ainda devido é de mais de R$ 300 mil (R$ 100 mil já foram bloqueados das contas da entidade e liberados em favor do reclamante Adelson Santos).
"Como pode, um imóvel que custou cerca de R$ 5 milhões e vem cumprindo uma função social? Aqui funciona uma escola infantil e, além dos nossos ensaios, oferecemos oficinas de música, dança e percussão para a comunidade", explica Antônio Carlos dos Santos, o Vovô, fundador e presidente do Ilê Aiyê.
O bloco considera "o valor exorbitante e totalmente fora da realidade" e tenta formas de arrecadar o dinheiro com empresas patrocinadoras e com o público que admira o mais antigo bloco afro do carnaval da Bahia.
Uma vaquinha virtual e uma live, realizada em julho, ainda não garantiram o retorno esperado.
Lives não bastam para arrecadação
"Durante a live recebemos cerca de R$ 30 mil em doações, mas o custo total da apresentação foi R$ 52 mil, com os músicos, som, iluminação, a produtora etc. Ou seja, ficamos com dívidas", diz Vovô.
Adelson Santos integrou a ala de canto do Ilê Aiyê de 1988 a 2010, ao lado de vozes marcantes do bloco como Guiguio, Graça Onasilê e Reizinho.
Adelson conta que a saída dele e de outros cantores e músicos foi motivada por dificuldades na relação de trabalho. "Foram 22 anos de dedicação ao bloco, conheci o Brasil quase todo e viajei para vários países, fazendo shows para o Ilê".
"Um dos diretores da entidade tinha atitudes arrogantes com a banda e a ala de canto. Destratava, atrasava pagamentos, além de pagar valores abaixo do combinado, o que gerou uma situação muito complicada", lembra. Mesmo assim, as demissões partiram do bloco.
Cantor reclama de falta de direitos e cachês menores do que o combinado
O cantor diz que não havia contratos, nem assinatura em carteira de trabalho e ainda acúmulo de funções como a atuação como instrutor nos projetos de educação do bloco.
"Fazíamos tudo com muito amor ao bloco que aprendemos a amar e respeitar desde pequenos, por conta das nossas famílias. Aceitávamos fazer shows com cachês pequenos e até quando não tinha, mas mesmo assim éramos desrespeitados", acusa o artista, que mora vizinho à sede do bloco.
Desde que saiu do bloco, Adelson divide-se entre um projeto musical com outros ex-integrantes do Ilê Aiyê, a banda Lundu, e um pequeno comércio, junto à casa onde vive com a família. "É daqui que tiro meu sustento".
Adelson afirma que tentou negociar por diversas vezes e, somente um ano após a demissão, recorreu à Justiça. "Eu fui praticamente o último daquela leva de mais de 30, entre cantores e músicos, que saíram do Ilê em 2010, e muitos deles moveram processo contra a entidade. Mas só falam de Adelson", reclama.
Vovô, dirigente do bloco, confirma que o Ilê Aiyê e outros blocos afro acumulam processos movidos por ex-integrantes. "Estamos à mercê de gente mau caráter e dessa indústria que se transformou esses processos", aponta.
Bloco desfila por Salvador desde 1975 e levou tema afro ao Carnaval
O Ilê Aiyê desfilou no Carnaval de Salvador pela primeira vez em 1975, denunciando o racismo, inclusive praticado por clubes e blocos tradicionais que não admitiam negros.
Com apenas cem integrantes, embalados pela canção Mundo Negro — do refrão "Que bloco é esse?", de Paulinho Camafeu, o desfile do Ilê Aiyê provocou uma grande transformação no carnaval da Bahia, com maior valorização das heranças africanas.
O imóvel, inaugurado como sede do Ilê Aiyê em 2003, fica na Ladeira do Curuzu, a poucos metros do Ilê Axé Jitolu, terreiro de candomblé da nação Jeje Mahin, onde o bloco foi criado em novembro de 1974. Foi lá que em 1988, a iyalorixá Hilda Dias dos Santos, Mãe Hilda Jitolu (1923-2009), iniciou um atendimento às crianças da vizinhança com aulas de alfabetização.
Atualmente a escola comunitária Mãe Hilda possui 80 crianças matriculadas, de 4 a 11 anos, que recebem formação gratuita, além de fardamento e lanche diário.
Algumas crianças ainda participam das oficinas de dança, canto e percussão oferecidas pela band´Erê, outro projeto de educação do Ilê Aiyê que funciona na Senzala do Barro Preto e que corre o risco de ser interrompido caso o leilão do imóvel aconteça de fato.
Carnaval 2021, que seria fonte de renda, está cercado de incerteza
Enquanto busca todos os meios possíveis para negociar o pagamento da dívida trabalhista e manter sua sede, outra preocupação do Ilê Aiyê é o Carnaval. Com turnês canceladas e sem iniciar as vendas das fantasias, o presidente do bloco informa que ainda há muitas incertezas em relação ao desfile de 2021.
"Além da falta de vacina contra essa doença, os blocos afro enfrentam as dificuldades financeiras. É muito difícil encontrar patrocinadores. As grandes empresas investem dinheiro para trazer artistas de fora da Bahia para o Carnaval, mas não apoiam as entidades que realizam projetos sociais o ano inteiro, que promovem a educação e geram empregos", reclama.
O tema previsto para 2021 é uma homenagem ao bairro da Liberdade e as diversas manifestações culturais da comunidade.
"Queremos homenagear o carnaval da Liberdade, os diversos blocos que existiam aqui nos anos 1970, escolas de samba, afoxés, blocos de trabalhadores da estiva, festas organizadas pelos comerciantes da própria comunidade. Queremos destacar essas pessoas e essa movimentação cultural que sempre foi forte aqui na Liberdade e região", detalha Vovô.
Se depender de Mãe Hildelice Benta, os deuses do candomblé serão sempre acionados para a proteção ao Ilê Aiyê e aos projetos do bloco. "Temos rezado muito, pedido aos voduns [entidades do candomblé] que clareiem, que abram os caminhos para que alguém ajude. Que tudo se acerte". A iyalorixá tem fé: "Esse Ilê de luz vai continuar brilhante".
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