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André Santana

Finalmente o futebol dá espaço para um ato relevante de basta ao racismo

Neymar usa camiseta com a frase "Não ao racismo" antes da partida entre PSG e Istanbul Basaksehir - REUTERS/Charles Platiau
Neymar usa camiseta com a frase 'Não ao racismo' antes da partida entre PSG e Istanbul Basaksehir Imagem: REUTERS/Charles Platiau

Colunista do UOL

12/12/2020 04h03

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Os jogos entre o Paris Saint-Germain e Istanbul Basaksehir, pela Liga dos Campeões, na terça-feira (8), e quarta-feira (9), tornaram-se um marco ao darem visibilidade a uma insatisfação coletiva contra a discriminação racial.

O gesto inédito de interrupção da partida pelas duas equipes, após acusação de ofensas racistas por parte de um membro da arbitragem, gerou discussões em toda parte e provocou posicionamento de instituições, clubes, dirigentes e atletas.

O início da segunda partida, com os jogadores em círculo, ajoelhados e de punhos cerrados, ao lado dos árbitros, era a imagem que faltava neste ano de tantas manifestações e denúncias, inclusive no ambiente esportivo.

No ano em que atletas da NBA se recusaram a jogar em protesto contra a violência racial nos Estados Unidos, e que a Fórmula 1 tentou impedir, sem sucesso, os gestos antirracismo de Lewis Hamilton, faltava ao futebol um ato à altura da popularidade e paixão que desperta em todo o mundo.

Para o Brasil, o ato promovido pelas equipes do PSG e Basaksehir teve uma sensação ainda mais especial pelo protagonismo do jogador Neymar.

O atleta, cujo posicionamento político é muitas vezes cobrado, teve a oportunidade de demonstrar sua solidariedade à luta contra o preconceito racial.

Em 2010, Neymar dizia que não era preto. Hoje já sentiu na pele

Neymar e o colega de time Kylian Mbappé foram os responsáveis por informar ao juiz que os atletas não voltariam a jogar enquanto o acusado pelas ofensas raciais não deixasse o campo.

Após muita tensão e da incapacidade dos árbitros em lidar com a situação sem precedentes no futebol, as equipes, em acordo, decidiram abandonar o gramado, em uma resposta potente ao racismo.

A cobrança a Neymar é reforçada por uma entrevista dada pelo atleta, em 2010, negando ter sido vítima de qualquer ato de racismo, dentro ou fora dos campos, "por não ser preto".

A resposta dada pelo jogador, aos 18 anos, ainda não havia sido confrontada por uma atitude contundente que demonstrasse a tomada de consciência racial por parte de Neymar. Ao contrário disso, o astro se manteve indiferente a diversas problemáticas raciais do Brasil nos últimos anos. Mas algo mudou.

Em setembro, o atacante do PSG já havia acusado o zagueiro do Olympique, o espanhol Álvaro González, de tê-lo xingado de macaco. Na ocasião, Neymar foi expulso por agressão e utilizou as redes sociais para denunciar o racismo sofrido em campo.

Neymar faz protesto antirracista no recomeço do jogo entre PSG e Istanbul  - FRANCK FIFE / AFP - FRANCK FIFE / AFP
Neymar faz protesto antirracista com jogadores no recomeço da partida entre PSG e Istanbul
Imagem: FRANCK FIFE / AFP

A falácia do racismo movido pela "paixão" pelo esporte

Nada se compara à atitude desta semana, especialmente por contar com o consenso entre os jogadores dos times adversários na interrupção da partida e na cena de união na abertura do novo jogo.

A fala do quarto árbitro ao se referir ao auxiliar técnico do Basaksehir não se tratou de uma provocação entre atletas e torcidas rivais, como têm sido justificadas as ofensas racistas ouvidas nos estádios.

Quando o goleiro Aranha denunciou o xingamento por parte da torcida do Grêmio, houve quem entendesse como um comportamento "natural" que integra a atmosfera de disputa do futebol. Como se perdêssemos o controle sobre a agressividade dos nossos atos ao vestir a camisa do time.

A "tensão" da situação é também vista como motivação para tiros criminosos disparados contra corpos negros por quem deveria ter a inteligência em agir em momentos de conflitos. A autorização para o disparo é dada muito antes pelo racismo.

Identificar alguém como "preto" é dizer que aquela pessoa é anormal naquele local

A fala racista no jogo PSG x Basaksehir demonstra que a discriminação independe de situações de conflitos ou ameaças. Está internalizada nas subjetividades e conduz o olhar e a percepção do mundo.

O uso do termo negro para identificar (e diferenciar) uma pessoa é o resultado das distinções raciais baseadas nos aspectos físicos dos indivíduos. São formas de nomear, criadas pelo processo de dominação, para se referir àquele considerado o diferente, o outro, o fora do padrão, logo, o inferior.

Como foi destacado pelos atletas em campo, dificilmente o árbitro utilizaria o termo branco para identificar um atleta não negro. Porque branco é a norma.

No cotidiano, essa forma de racismo se expressa sempre que a cor da pele e os traços físicos (cabelo, nariz, lábios etc) condicionam, a priori, o tratamento dado às pessoas pretas. Estas têm sua humanidade resumida ao "cabelo duro", "nariz amassado", "beiço de jegue" ou à "cor de betume".

Fundamental que os jogadores de futebol tenham assumido essa luta, pois cresce na sociedade o desejo de eliminar essas discriminações, precisando muitas vezes de atitudes corajosas de rompimento.

É hora de fazer valer os versos da música War, de Bob Marley, que mesmo estampada em camisetas e broches mundo afora é pouco compreendida, e menos ainda vivenciada: "Enquanto a cor da pele for mais importante que o brilho dos olhos, haverá guerra".