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André Santana

REPORTAGEM

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'Cooperação internacional que é falida, não o Haiti', diz pesquisadora

Jovenel Moise no Palácio Presidencial do Haiti - Valerie Baeriswyl/AFP
Jovenel Moise no Palácio Presidencial do Haiti Imagem: Valerie Baeriswyl/AFP

Colunista do UOL

09/07/2021 11h39

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O assassinato do presidente do Haiti, Jovenel Moise, 53, na residência oficial, no último dia 7, levou a imprensa internacional, mais uma vez, a destacar a tensão política, a crise econômica e o clima de violência que marcam o pequeno país americano.

O que poucos dizem é sobre a responsabilidade da comunidade internacional na situação do Haiti, resultado de uma histórica tentativa de conter uma sanha revolucionária.

Ainda hoje o país paga caro pela ousadia de ter feito um movimento em 1791 que provocou a primeira independência de uma colônia na América. Africanos escravizados e mestiços tiveram a coragem de rasgar a bandeira da França, criar uma Constituição própria e instituir um Estado independente em 1804.

O maior atrevimento foi mesmo abolir a escravidão, sustentáculo da economia colonial e dos processos de expansão e desenvolvimento dos países europeus.

Primeiro Estado moderno na América

"Além de instituir o primeiro Estado moderno e a primeira ideia de Constituição tal como reconhecemos hoje, o Haiti radicalizou a ideia de igualdade com a abolição da escravidão, além de ser pioneiro nas questões de direitos humanos", afirmou em entrevista à coluna Maria do Carmo Rebouças dos Santos, professora de Direito da Universidade Federal do Sul da Bahia.

Ela acaba de lançar o livro "Constitucionalismo e Justiça Epistêmica: o lugar do movimento constitucionalista haitiano de 1801 e 1805" (Editora Telha, 2021).

Maria do Carmo critica os países, incluindo o Brasil, que contribuíram para manter a dependência econômica no Haiti por meio de projetos liberais que não levam em conta os anseios dos haitianos.

"Insistem na imposição de programas que já nascem falidos porque vêm de fora para dentro."

Maria do Carmo aponta como principal causa das tensões sociais e políticas o modelo de dependência econômica criado pelo colonialismo e ainda mantido pelos órgãos de cooperação internacional. "É a cooperação internacional que é falida, não o Haiti", defende.

Maria do Carmo Rebouças - Divulgação - Divulgação
Maria do Carmo Rebouças, autora do livro 'Constitucionalismo e Justiça Epistêmica: o lugar do movimento constitucionalista haitiano de 1801 e 1805' (Editora Telha, 2021)
Imagem: Divulgação

Nascida em Salvador, com formação em Direito (UCSAL) e doutorado em Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional (UNB), Maria do Carmo atuou em Washington (EUA), na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), e no PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), quando se aproximou da realidade histórica do Haiti.

A professora fala de um círculo vicioso, que injeta bilhões de dólares para manter a dependência, gerando violência interna e fragilidade democrática. Tudo com o apoio das elites nacionais.

Entre 2004 e 2017, o Brasil liderou a Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti), dando apoio às forças policiais haitianas. "A missão recebeu diversas denúncias de violências contra a população, sem conseguir estabilizar o país", lembra Maria do Carmo.

Abolir a escravidão era mote da Revolução Haitiana

Maria do Carmo conta que Simon Bolívar, considerado o libertador da América, precisou contar com apoio do exército haitiano para os processos de independência que liderou no início do século 19. Mas não cumpriu os acordos.

"A principal exigência do Haiti era o fim da escravidão na América. Além de não ser atendido, o país foi boicotado do Congresso do Panamá organizado por Bolívar, em 1826", conta.

A Revolução Haitiana gerou tensão nas metrópoles europeias, que passaram a ter medo de que o exemplo fosse repetido nas outras colônias.

"Os formuladores da primeira Constituição brasileira estavam de olhos atentos ao Haiti, inclusive mantiveram a escravidão. O Brasil sempre preferiu o modelo europeu e o norte-americano do Direito, nos quais os ideais de liberdade e igualdade atendem somente aos interesses dos homens brancos e do capitalismo", completa Maria do Carmo.

Ela cita o livro "Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites no século XIX", da pesquisadora Celia Maria Marinho de Azevedo, como referência para entender as tentativas de conter os processos emancipatórios de libertação das populações negras.

Modelos Constitucionais Pluriétnicos

Para Maria do Carmo, o racismo e o eurocentrismo são as causas para o desconhecimento sobre a história do Haiti e o desprezo pelo modelo constitucional haitiano, responsável pela promulgação de duas constituições pioneiras, em 1801 e 1805.

Essa é a defesa feita no livro recém-lançado e também nas pesquisas de Maria do Carmo. "O objetivo é constranger os colegas do Direito que desprezam outros modelos constitucionalistas como o do Haiti e denunciar o eurocentrismo ainda vigente no campo do Direito."

Livro Constitucionalismo e Justiça Epistêmica: o lugar do movimento constitucionalista haitiano de 1801 e 1805 (Editora Telha, 2021) - Divulgação - Divulgação
Obra dá visibilidade ao movimento constitucional haitiana e questiona o eurocentrismo dos estudos do Direito
Imagem: Divulgação

A pesquisadora cita outras constituições avançadas e ainda pouco estudadas, como a do México, da Venezuela e, mais recentemente, do Equador e da Bolívia, que incorporaram o sistema de justiça dos povos indígenas.

"O Brasil deveria se considerar um estado pluriétnico, especialmente em respeito às contribuições dos povos indígenas."

Conhecer a história do Haiti, percursor no combate ao racismo e das opressões geradas pelo capitalismo, pode nos fazer avançar nas questões dos direitos humanos e da democracia.

Em vez de apenas repetir as imagens de miséria e violência, o Brasil poderia reconhecer e aceitar essa ousadia, nunca perdoada pela Europa colonialista.