Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Não saber quem é GKay não faz de você melhor que ninguém
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Foi quase impossível navegar pelas redes sociais nos últimos dias sem se deparar com alguma postagem sobre a tal Farofa da Gkay.
A festa de aniversário da humorista e influenciadora digital paraibana Gessica Kayane, 29, reuniu celebridades da música e da internet e jogadores de futebol, por três dias, em uma clube em Fortaleza.
Os números que circulam na imprensa, relacionados à festa, são altíssimos, desde os quase R$ 3 milhões de custo total, até os mais de 1,6 milhão de seguidores alcançados pela anfitriã no perfil do evento nas redes sociais.
Enquanto muitos buscavam acompanhar a movimentação dos famosos na festa, por meio de sites especializados e dos conteúdos produzidos pelos próprios participantes, houve quem utilizasse seus perfis para demonstrar total desconhecimento sobre a aniversariante e seus convidados.
Muita gente aproveitou para se colocar em um 'grau elevado' por não estar inteirado do universo das estrelas da cultura de massa, muitas produzidas e reconhecidas a partir da internet.
Não saber quem é Gkay não faz de ninguém superior aos 17 milhões de seguidores da humorista no Instagram e aos outros milhares que se interessaram por ela a partir da badalada festa.
Algoritmos criam bolhas
Mesmo globalizada e hiperconectada, a sociedade continua compartimentada em bolhas.
As redes sociais, por mais surpreendente que pareça, potencializaram esses isolamentos em nichos de interesse, fazendo com que o usuário receba mais e mais conteúdos semelhantes, afastando a possibilidade de conhecer novidades ou de ser surpreendido, mesmo que negativamente.
Filmes como Privacidade Hackeada (2019) e O dilema das redes (2020), ambos da Netflix, mostram como as plataformas digitais utilizam os algoritmos para criar um isolamento ideológico e mercadológico, a partir da oferta de informações, conteúdos e produtos com o mesmo viés de interesse demonstrado inicialmente pelo usuário.
É aquela sensação de surpresa que temos quando fazemos uma compra ou simples busca na internet e, a partir daí, passamos a receber anúncios e promoções relacionadas.
Se fizermos o jogo do algoritmo, todo o nosso consumo será a partir das sugestões ofertadas. A princípio agradável, essa dinâmica nos impossibilita de desfrutar da diversidade e pluralidade de opções que há na internet.
Neste sentido, quem não conhecia Gkay até a badalada Farofa poderia estar simplesmente preso a uma bolha criada a partir dos seus interesses mais particulares, o que não quer dizer melhores ou piores do que os dos milhares que frequentam a bolha em volta dos chamados influenciadores digitais.
Influenciadores digitais mobilizam multidões
O fato é que produtores de conteúdos para redes sociais como GKay e seus convidados dialogam com um número enorme de pessoas, marcas e cifras, com uma possibilidade imensa de colocar em destaque temas de interesse público.
É verdade que poucos estão interessados em utilizar essa 'influência" para assuntos sérios, mas a adesão dos seguidores existe.
Pessoas interessadas em discutir questões importantes para o país não deviam ignorar o diálogo com esse público.
É justa, por exemplo, a crítica quanto ao inadequado momento para festejar com aglomeração e ostentação, quando o país ainda enfrenta uma pandemia que continua provocando óbitos e quando a fome e a miséria aterrorizam os lares brasileiros.
O que as "celebridades" reunidas na Farofa e seus seguidores pensam sobre esse assunto, que deveria mobilizar a todos em busca de saídas para essa situação?
Menosprezar os seguidores mobilizados pelos influenciadores digitais é manter estratificações sociais. É interditar um debate que nos ajude a explicar as condições políticas que nos levaram aos nossos piores problemas.
O enfrentamento desta crise atual não será realizado apenas com a participação daqueles que se sentem superiores por consumirem melhores bens culturais ou por travarem discussões elaboradas por conceitos acadêmicos.
Flagrante de elitismo
Um flagrante deste pedantismo elitista ocorreu com a tragédia que retirou a vida da cantora e compositora Marília Mendonça, no mês de novembro.
Mais uma vez, os que se consideram intelectualmente elevados por não ouvir música popular se orgulharam de não conhecerem as canções que tanto sucesso fazem em todo país.
Além dos prêmios acumulados e dos shows concorridos, a breve carreira de Marília Mendonça é um verdadeiro fenômeno de popularidade e de mobilização do interesse do público brasileiro —a artista mais ouvida nas plataformas de streaming musical acumulou 40 milhões de seguidores no Instagram, 15 milhões no Facebook, 7,8 milhões no Twitter e 5 milhões no mais recente TikTok.
Toda essa potência de diálogo com a população foi ignorada por pessoas que preferiram esnobar em um elitismo excludente.
Em um grupo de pesquisadores e professores universitários, uma acadêmica sentiu orgulho em dizer que estava conhecendo a cantora apenas naquele momento da tragédia pela tristeza demonstrada pela empregada doméstica e pela manicure. Um depoimento de isolamento e elitismo vindo de alguém que frequenta a sala de aula e tem (ou poderia ter) a oportunidade de ouvir as mais diversas referências culturais que formam a diversidade deste país.
Não se discute aqui gosto ou preferência musical, mas o interesse em entender e dialogar com as classes populares.
É preciso pensar qual o Brasil que interessa a esses "intelectuais".
Tão preocupados em discutir e achar soluções para os problemas nacionais talvez ignorem os problemas vividos pelo Brasil que canta e ama as músicas de Marília Mendonça, o mesmo Brasil que se distrai com as dancinhas dos vídeos da Gkay.
Possivelmente são seletivos também quando se trata dos dramas das famílias pretas nas favelas ou dos povos originários em suas terras ameaçadas se a discussão não estiver embrulhada em canções ditas eruditas e perfumadas por discursos com etiquetas de sofisticação.
Muito do Brasil real, com suas tragédias diárias, passa pelas telas apropriadas pelas redes digitais. Não vê quem não quer, quem prefere o conforto da sua bolha.
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