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Olivetto ignora país dos famintos e das domésticas 'quase' da família
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O artigo do publicitário Washington Olivetto, publicado no jornal O Globo, foi duramente criticado nas redes sociais por apresentar um roteiro cultural e gastronômico do Rio.
A Cidade Maravilhosa das elites, pintada por Olivetto, contrasta com a miséria e a violência vivida não apenas no Rio. Pesquisa recente mostra que 33 milhões de brasileiros passam fome, enquanto, segundo a ONU (Organização das Nações Unidas), o país tem 60 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar.
Ao chamar a experiência de "pós-graduação de vida", ele reafirma um olhar alheio às mazelas sociais de uma elite que pouco se importa em ser minoria em um país de miseráveis e de usufruir dos privilégios da extrema desigualdade que estrutura o Brasil.
O pai preocupado do artigo disse que procurou desfazer um pouco da péssima imagem que o Brasil vem construindo no exterior nos últimos anos. Talvez por isso tenha começada apresentando a babá do filho que virou "parte da família".
Esta é, sem dúvida, uma marca cultural característica das elites brasileiras: a relação ambígua com as profissionais que exercem as atividades no ambiente doméstico. Em vez de trabalhadoras, elas são colocadas em uma categoria dúbia de "parte da família", passando a priorizar critérios afetivos e de caridade nas relações que deveriam ser pautadas por direitos trabalhistas.
Trabalhadoras 'quase da família' recebem 'quase direitos'
A intenção não é questionar o caso particular da babá do filho do publicitário —que, espero, esteja gozando de todos os justos benefícios do seu trabalho—, mas refletir sobre a insistência do comportamento herdado de nosso passado colonial.
Ao longo da história, considerar as trabalhadoras domésticas "parte da família" não impediu uma sucessão de violências contra essas mulheres, em sua maioria, negras.
Denúncias de ausência de direitos, baixa remuneração, explorações e humilhações, chegando a casos análogos à escravidão, não condizem nem com a categoria de trabalhadora e muito menos com o título afetuoso de membro da família.
Repito que não se trata especificamente do tratamento dado pelo publicitário à babá do seu filho, que aliás, é justo dizer, foi considerada "parte da família" o que parece ser um avanço diante dos mais comuns títulos de "quase da família" ou "como se fosse da família" dados pelos patrões às auxiliares do lar.
O problema é que o "quase da família" implica diretamente na condição de "quase trabalhadora", de "quase cidadã", e que por isso são merecedoras de "quase direitos". Ao contrário disso, espera-se que o "parte da família" garanta os benefícios e privilégios destinados a todas as outras partes de herdeiros do patrimônio familiar.
Bolsonaro votou contra o direito das domésticas
Último país a abolir o trabalho escravo, o Brasil resistiu o que pôde até garantir legalmente os direitos das trabalhadoras domésticas.
Somente em 2015, foi sancionada a Proposta de Emenda Constitucional, conhecida como PEC das Domésticas, da qual o presidente Jair Bolsonaro (PL) tem orgulho em afirmar ter sido o único parlamentar a votar contra.
O fato não surpreende ninguém, mas é preciso relembrar que Bolsonaro, então deputado federal, votou contra os direitos das trabalhadoras domésticas.
Somente a partir da PEC, essa atividade fundamental para garantir o cuidado com os bens preciosos dos mais ricos —casa, família, filhos— foi igualada às outras funções laborais, passando a gozar de direitos como regulamentação das horas de trabalho e horas extras remuneradas, além do recolhimento do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), Seguro Desemprego, entre outras garantias.
Um pouco da péssima imagem que o Brasil tem no exterior —preocupação demonstrada por Washington Olivetto— vem justamente desse tratamento colonial destinado às trabalhadoras domésticas.
O Brasil já exportou para o mundo o tal "quarto de empregada", que passou a integrar os imóveis de brasileiros endinheirados em Miami. Nos Estados Unidos, país que também possui um passado escravocrata, não é comum que trabalhadoras domésticas durmam na casa dos patrões, ficando à disposição 24 horas para o serviço, como ocorre no Brasil.
Escravidão moderna e a 'Mulher da casa abandonada'
Nas últimas semanas, o Brasil tem acompanhado com interesse —alguns pela seriedade do caso, outros por puro divertimento— o caso da Mulher da Casa Abandonada, que ganhou repercussão a partir do podcast do jornalista Chico Felitti, publicado pela Folha de S.Paulo.
Entre todos os fatos bizarros que rodam a história de Margarida Bonetti, que vive em um casarão em ruínas em Higienópolis, um dos bairros mais caros de São Paulo, o que mais chama atenção são os bárbaros crimes que ela e o marido, Renê Bonetti, cometeram contra uma trabalhadora doméstica brasileira levada pelo casal aos Estados Unidos.
A acusação é de que a mulher sofreu por 20 anos maus-tratos, violências domésticas, cárcere privado e tratamentos análogos à escravidão.
Enquanto o marido foi indiciado pelos crimes e condenado à prisão, Margarida Bonetti conseguiu fugir para o Brasil e atualmente é considerada foragida pelo FBI.
O julgamento dos crimes, ocorrido em 2000, evidenciou as diferenças no tratamento aos trabalhadores domésticos entre Brasil e Estados Unidos e provocou um debate na Justiça norte-americana sobre a proteção dos trabalhadores submetidos à escravidão moderna, especialmente os imigrantes.
No podcast, Chico Felitti informa que a vítima já trabalhava na casa dos pais de Margarida Bonetti, que deram a mulher como "presente" ao casal na década de 1970.
Para as elites brasileiras, ser parte da família significa ser um bem familiar, como um patrimônio material que pode ser passado para os herdeiros. Não causa constrangimento algum falar de trabalhadoras domésticas e babás que estão na família há gerações, contribuindo para o crescimento das conquistas familiares, especialmente as econômicas, sem usufruir dos resultados."
Basta analisar as condições de vida dessas mulheres e de seus familiares "reais" após anos de dedicação. Muitas continuam com as mesmas necessidades que provocaram a submissão às precárias condições do trabalho doméstico.
Para manter as desigualdades brasileiras, interessa aos privilegiados que se mantenha um contingente de mão de obra faminta e necessitada da caridade supostamente apresentada pelo tratamento de "parte da família".
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