Topo

André Santana

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Jade Picon e ACM Neto desfrutam do privilégio de serem brancos no Brasil

Jade Picon posou para campanha de marca de sapatos com estampas africanas - Reprodução/Instagram
Jade Picon posou para campanha de marca de sapatos com estampas africanas Imagem: Reprodução/Instagram

Coluna em UOL Notícias

29/09/2022 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

A escolha da influenciadora Jade Picon para estrelar a campanha de uma sandália, cuja inspiração para sua estampa e design é a cultura africana, só demonstra que, no Brasil, pessoas brancas são sempre muito bem aceitas em espaços de prestígio e valorização social.

A Arezzo convidou a marca Meninos Rei, criada em Salvador pelos pelos irmãos Céu Rocha e Júnior Rocha, para celebrar a clássica sandália Anabela. A dupla é reconhecida e elogiada pelas criações que valorizam as influências africanas.

No perfil da marca, a reafirmação das fontes de inspiração para o trabalho da dupla: "Nos inspiramos no nosso DNA ancestral, nosso berço, a África e a ligação de irmandade que existe entre nossos povos, através das belezas na nossa cidade, Salvador/Bahia", lembraram os baianos.

Ao escolher Jade Picon, só se confirma que, se é para ressignificar as cores e símbolos tradicionais do continente africano, dando-lhes status de requinte fashion, nada melhor que alguém com o padrão eurocêntrico tão admirado na mídia e na sociedade brasileira.

Essa é também a mesma motivação para a escolha da celebridade para protagonizar Travessia, a próxima novela das 21h, da Rede Globo. Pelas primeiras imagens de divulgação da produção, já se percebe que a personagem é rica, mimada, 'bem-nascida' e que odeia ser contrariada.

Para o imaginário midiático brasileiro funciona perfeitamente para fazer jus a esse papel o rosto que ficou ainda mais famoso no Brasil em um reality show, quando demonstrou que a fortuna que herdou da família garantiu uma postura de atrevimento e ousadia pouco desfrutada por outras brasileiras.

Para mera comparação, basta lembrar como a atitude altiva de outra participante, Natália Deodato, foi punida com requintes de violência durante a atração.

Os traços fenotípicos de Jade Picon, aliados à sua herança, permitem portas abertas nos mais disputados lugares de reconhecimento e aplausos.

A seleção de Jade como protagonista da telenovela foi criticada, inclusive, por outras atrizes da emissora, conhecedoras dos grandes desafios aos quais são submetidas para conquistarem uma personagem na principal produção da televisão brasileira.

Esforços minimizados para quem tem a branquitude ao seu favor. Para confirmar, é só tentar lembrar quantas atrizes não brancas já protagonizaram telenovelas.

Abordamos esse assunto ano passado justamente quando a Globo celebrou 70 anos de novelas sem valorizar talentos de artistas negros.

O incômodo com a representação da cultura africana pela beleza nórdica de Jade Picon encontra ressonância na dificuldade que pessoas não brancas passam para serem escaladas para produções que não tenham o componente étnico como temática.

Ou seja, atrizes e modelos negras são limitadas a integrarem histórias relacionadas à escravidão, ao racismo e as desigualdades raciais (e todas as sub-representações decorrentes como serviçais ou marginais). Enquanto às brancas, todo papel lhes cabe.

Eu não posso dizer que sou branco, que é assim que me vejo. Declaração racial é dada no trato social. Eu não tenho a opção de me passar por branco, ainda que isso possa me conceber alguma vantagem
Kleber Rosa (PSOL), candidato ao governo da Bahia, em debate com o candidato que se declarou pardo, ACM Neto (União Brasil)

No debate entre os candidatos ao governo da Bahia, realizado nesta terça, 27, pela TV Globo, a auto declaração como pardo de ACM Neto (União Brasil) foi alvo de sérias críticas por parte dos adversários, que repetiram a acusação de afroconveniência oportunista, como já havíamos apontado aqui na coluna, há um mês.

Atenção, eleitor: ACM Neto se declarar pardo é oportunismo afroconveniente


Mas somente o candidato Kleber Rosa (PSol) deu ao tema a seriedade necessária, destacando que a declaração racial se refere às relações sociais, ao convívio em um ambiente estruturado pelas diferenças raciais, aos lugares ocupados ou impedidos por conta do racismo.

Ao se autodeclarar pardo, portanto politicamente negro, o herdeiro político, econômico e midiático da família Magalhães, reivindica para si interdições e preconceitos experimentados cotidianamente por aqueles que possuem a pele escura e os traços fenotípicos marcadamente de origem africana. Ele se apropria de uma experiência que passa longe da sua vivência de privilégios.

ACM Neto - Valter Pontes/Secom e Reprodução/TV Globo - Valter Pontes/Secom e Reprodução/TV Globo
Candidato ACM Neto (União Brasil) se tornou alvo de piadas e memes sobre a transformação da cor da pele do político nesta campanha eleitoral
Imagem: Valter Pontes/Secom e Reprodução/TV Globo

Mesmo com todas as críticas, piadas e até processos judiciais, o candidato mantém a autodeclaração por desfrutar da autoestima moldada na branquitude e nos ensinamentos que recebeu de que, nascido com a cor da pele que tem, ele pode ser o que quiser, inclusive negro.

Só a esquizofrênica constituição social brasileira, estruturada no racismo, que oferta privilégios aos mais claros e impedimentos aos mais escuros, para possibilitar a Jade Picon representar a cultura africana e a ACM Neto se associar aos pretos e pardos do estado da Bahia.

Aos brancos, qualquer lugar é seu por direito. O racismo autoriza.