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Maria Bethânia é imortal da Academia de Letras da BA: "Escreve com a voz"
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A cantora Maria Bethânia, 76, tomou posse na última quarta-feira, 03, como imortal da Academia de Letras da Bahia (ALB).
As quase seis décadas de carreiras, com mais de 50 álbuns lançados e shows memoráreis, já seriam suficientes para compreender a importância da artista para a cultura brasileira e, portanto, legitima para ocupar uma vaga na instituição fundada em 1917, por intelectuais como o jurista Rui Barbosa e o médico e educador Ernesto Carneiro Ribeiro.
Pela Academia de Letras da Bahia já passaram nomes como Jorge Amado, Zélia Gattai, João Ubaldo Ribeiro, Mãe Stella de Oxossi e, atualmente, integram a lista de membros o poeta tropicalista José Carlos Capinam, o pesquisador Muniz Sodré, entre outros intelectuais e escritores.
Ao longo da história centenária da ALB, diferentes trajetórias justificaram a escolha dos imortais. No caso de Bethânia, o caminho foi o da música popular e um compromisso artístico com a palavra dita, cantada, interpretada na performance da artista.
Em seu discurso de posse, Maria Bethânia percorreu passagens dos seus 58 anos de carreira, evidenciando o elo sempre buscado por ela, entre a música e a literatura e a utilização do alcance do seu canto para a divulgação da produção literária em língua portuguesa.
Os textos literários sempre estiveram aliados às composições musicais desde os primeiros shows de Bethânia, a exemplo de Rosa dos Ventos, de 1971, definitivo e definidor nas escolhas estéticas da artista.
No show dirigido por Fauzi Arap, Bethânia entrelaça músicas do cancioneiro popular brasileira com textos de Fernando Pessoa e Clarice Lispector, os escritores mais recorrentes na trajetória lítero-musical da intérprete.
Antes, no show Comigo me desavim, de 1967, cujo título baseia-se nos versos do poeta português Francisco Sá de Miranda, Bethânia já havia iniciado uma parceria com o diretor teatral Fauzi Arap, que a despertou para a obra de Clarice e as potencialidades da sua arte de declamar.
"Agradeço aos mestres do teatro que entenderam que a minha expressão mais completa pedia que a literatura estivesse em par com a música", destacou a cantora em seu discurso na Academia de Letras da Bahia.
Música e poesia dentro de casa
Bethânia lembrou que a primeira aproximação com a poesia foi em casa, em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo da Bahia. O pai era amante da poesia e amigo de poetas locais e declamava pela casa. A mãe, de bela voz, entoava rezas, cantos líricos e marchinhas de carnaval.
"Fui criada em uma casa onde a poesia e a música eram naturais como respirar", disse a artista, fazendo entender o porquê do domínio visceral que possui em emocionar com as palavras, seja cantando ou recitando.
Trajetória de enlaçamento entre música e literatura
Em Caderno de Poesias, de 2015, projeto literário e audiovisual, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais, Bethânia explica como ousa e gosta de se expressar, no palco, através da palavra falada:
"Eu gosto de emprestar minha vida e voz às histórias e aos personagens que os autores nos revelam. Eu sei que ler, ouvir e dizer poesia hoje, neste tempo de tanto desapego, de tanta correria, é uma tarefa difícil. É como provocar o mundo. Vivemos como se não coubessem mais o silêncio, as delicadezas. Mas cabem, isso me comove e me atrai", Maria Bethânia, Caderno de Poesias (2015).
Dos shows para os discos e, mais recentemente, para o cinema
A dedicação da cantora com as letras tem gerado importantes registros audiovisuais, como O Vento Lá Fora, de 2014, dirigido por Marcio Debellian. No filme, Maria Bethânia se reúne com a professora Cleonice Berardinelli, para a leitura de textos do poeta português Fernando Pessoa.
Uma das maiores especialistas em literatura portuguesa, sobretudo na obra de Pessoa, e imortal pela Academia Brasileira de Letras, Cleonice Berardinelli faleceu em janeiro deste ano. O filme é uma declaração de amor à poesia e ao poeta, tanto da artista, como da pesquisadora.
Em 2016, a cantora recebeu convidados para refletir sobre a arte de declamar e a escrita poética de Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Ariano Suassuna, Carlos Drummond de Andrade, Waly Salomão e outros. O programa Poesia e Prosa, foi exibido pelo canal Arte 1, em oito episódios.
Outro documentário Karingana - Licença para Contar, de 2017, dirigido por Mônica Monteiro, registra o encontro de Maria Bethânia, em Moçambique, com textos de escritores africanos de língua portuguesa como Mia Couto, José Eduardo Agualusa e Paulina Chiziane, que acaba de receber oficialmente o Prêmio Camões de 2021 e se tornou a primeira mulher negra premiada com a maior honraria da língua portuguesa.
"Bethânia conseguiu imprimir uma dimensão viva, uma coisa que eu próprio não tinha descoberto. Era como se eu desconhecesse o que eu tinha feito. É muito lindo isso", depoimento do poeta moçambicano Mia Couto, em Karingana, sobre a leitura de seus textos por Maria Bethânia.
Os projetos litero-musicais de Maria Bethânia têm estimulado iniciativas de professoras em escolas públicas pelo Brasil, alcançando estudantes de diferentes séries a pensar sobre arte, cidadania e a formação cultural do Brasil, tendo como ferramentas as pesquisas musicais e literárias apresentadas pela artista em seus álbuns, a exemplo de Brasileirinho, de 2003, um mergulho na diversidade das referências indígenas, sertanejas, africanas e lusitanas, que formaram esse país.
Em 2016, Maria Bethânia recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal da Bahia, pela divulgação e preservação, através de sua voz, de dois importantes patrimônios imateriais brasileiros, a música e a poesia.
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Diferente dos conterrâneos, Tom Zé e Gilberto Gil que, em 2022, foram eleitos, respectivamente, para a Academia Paulista de Letras e Academia Brasileira de Letras por conta das inúmeras composições musicais de ambos, Bethânia entra na Academia de Letras da Bahia como uma intérprete, divulgadora e compositora pela fala.
"A mulher que escreve literaturas com a voz e faz do nosso cotidiano momentos de alegria, prazer, devoção, revolta e paixão", assim definiu o poeta e doutor em Antropologia Marlon Marcos:
Professor da Unilab (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afrobrasileira) Marlon Marcos defendeu, em 2008, a dissertação Oyá-Bethânia: os mitos de um Orixá nos ritos de uma Estrela, na Universidade Federal da Bahia. Anos depois, a devoção religiosa de Bethânia, impressa em suas escolhas e performances musicais, foi o mote do samba-enredo 'Maria Bethânia: a Menina dos Olhos de Oyá', da Mangueira, vencedora do Carnaval 2016 do Rio de Janeiro.
Também jornalista e historiador, Marlon é pioneiro em levar para a universidade a trajetória artística de Maria Bethânia como objeto de estudo científico.
Ele explica essa maneira peculiar da artista em fazer unir fragmentos de textos e a interpretar de forma singular, tornando-se também autora dos resultados apresentados nos palcos.
"No momento em que ela faz recortes de textos, que ela faz a intertextualidade entre os textos e entre a voz, o canto e as poesias, ela está fazendo o que os griôs faziam, uma espécie de literatura oral, chamada de oralituras e que acaba sendo uma autoria. A maneira de escolher, de elencar, tem uma pesquisa, uma costura entre os textos. É um trabalho autoral, há ali uma composição", defende Marlon Marcos.
Oralituras é um conceito elaborado pela pesquisadora Leda Maria Martins para designar histórias e saberes ancestrais transmitidos não apenas através da literatura, mas também em manifestações performáticas da cultura popular.
A menina que queria ser atriz e trapezista, tornou-se intérprete do Brasil
"Minha mãe me deu ao mundo. De maneira singular. Me dizendo a sentença. Para eu sempre pedir licença. Mas nunca deixar de entrar"., Maria Bethânia iniciou seu discurso de posse na Academia de Letras da Bahia, com os versos da canção Tudo de Novo, composta pelo irmão Caetano Veloso:
No discurso, entre lembranças, poesias e versos de canções, declamados pela nova imortal, a aliança entre música e literatura. Do Hino ao Senhor do Bonfim da Bahia a trechos de composições de Roque Ferreira, Batatinha, Vinicius de Moraes, entre outros. "Poetas da canção que me traduziram e que eu traduzir em meu canto. A lista não teria fim, mas começaria com Caetano Veloso e Chico Buarque", sentenciou Bethânia.
No encerramento do discurso, Maria Bethânia celebrou o encantamento da sua presença na instituição, como entrelaçamento de várias artes:
"Neste dia especial, esta casa está recebendo, em primeiro lugar, uma mulher, reconhecendo os poderosos laços entre música e literatura e dignificando um trabalho que não se dá nos livros ou nas universidades, mas nos palcos, nos discos, no rádio, sem pouso, sem repouso, numa bela e mágica corda bamba. Como se a menina de Santo Amaro tivesse, enfim, realizado seu sonho de ser trapezista".
Maria Bethânia, intérprete do que há de melhor no Brasil, é a voz que conduz a palavra à escrita das emoções.
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