André Santana

André Santana

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

'Afrobetização' tardia de Wanessa soa como oportunismo para autopromoção

A cantora Wanessa Camargo expôs elitismo e muito preconceito durante sua participação no BBB 24, além de ter sido expulsa do programa em um momento oportuno, pois sua continuidade no reality poderia ter manchado ainda mais sua carreira. Encerrado o programa, agora ela parece querer tirar algum proveito do seu péssimo desempenho.

Camargo ficou marcada pela obsessiva perseguição ao candidato Davi, que confirmou seu favoritismo vencendo a edição encerrada na última terça (16). O incômodo com a presença do motorista de aplicativo foi um misto de pavor, medo e ódio, bem ao modo como o racismo constrói na mentalidade de pessoas brancas uma aversão às pessoas pretas - ainda mais quando o preto ousa não se subordinar aos caprichos e privilégios da branquitude, como fez Davi desde o início da atração.

Agora com o estrago feito à sua imagem, a artista tenta vender a ideia de reconhecimento das falhas e reconstrução. A tal conversão viria com aprendizados e reflexões que ela chamou de 'processo de afrobetização'.

"Senhores perfeitos, lhes apresento a nova Wanessa imperfeita, que assume seus erros, mas reconhece seus valores e sua história", escreveu a cantora em uma postagem de lançamento da canção Caça Like, um 'manifesto para o linchamento virtual'.

Ao invés de se afrobetizar, Wanessa Camargo contribuiria mais se ela mergulhasse no entendimento sobre branquitude e entendesse os privilégios de nascer branca e herdeira em um país racista como o Brasil, tomando a decisão de não reproduzir as falas e práticas de discriminação observadas no BBB e repetidas no cotidiano da sociedade desde a colonização até os dias atuais.

Apropriação indevida do termo

O reconhecimento dos próprios valores e histórias se relaciona bem à metodologia de afrobetização, que educadoras têm utilizado em processos de formação pedagógica, só que em comunidades negras, com realidades bem distantes da filha de Zezé de Camargo.

"O termo afrobetização partiu da necessidade de fomentar a reflexão crítica da condição da população negra na estrutura social, promovendo medidas educativas voltadas à emancipação dos sujeitos por meio do reconhecimento e autoconhecimento de si a partir do que lhe é próprio, para se inserirem socialmente na condição de cidadão", explica Carla Liane, doutora em ciências sociais e professora da Universidade do Estado da Bahia.

A ideia de afrobetizar surgiu a partir de um projeto de intervenção social, coordenado pela psicóloga Vanessa Andrade, com crianças negras das comunidades do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho, no Rio de Janeiro. O propósito do projeto foi fomentar práticas pedagógicas que estimulassem o protagonismo e a valorização do povo negro
Carla Liane, doutora em ciências sociais

Continua após a publicidade

Para Carla Liane, o uso do termo pela cantora Wanessa Camargo é uma apropriação indevida e não faz sentido algum. "É como certos modismos ou afroconveniências. Não vejo a real disposição dela em se abrir e compreender a realidade negra. Da forma como ela está expondo soa simplesmente como autopromoção".

Afrobetizar é buscar a reconexão com a ancestralidade

A proposta de afrobetização tem justamente o objetivo de problematizar o modelo de educação desumanizante, violento e universalizante de base eurocêntrica que desconsidera a realidade das crianças negras em seu processo de alfabetização.

"Paulo Freire nos ensinou que a leitura de mundo precede a leitura das palavras. Então, entendemos que no processo de aquisição da linguagem, as práticas culturais vivenciadas pelas crianças precisam ser valorizadas e respeitadas", destaca Liane.

Não só as crianças. A professora defende que as práticas educativas baseadas no conceito de afrobetização são muito eficientes no contexto do EJA (Educação de Jovens, Adultos e Idosos, do Governo Federal), formado por um contingente significativo de pessoas negras.

"Nesse processo de aquisição de um conhecimento que antes não tinham, esses jovens, adultos e idosos podem aprender mais a partir das suas próprias histórias pessoais, processos de resistências e saberes construídos, em uma reconexão com a ancestralidade", diz.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Deixe seu comentário

Só para assinantes