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Carlos Madeiro

REPORTAGEM

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Terra quilombola vai a leilão para pagar dívida de ex-prefeito no Maranhão

Comunidade Mundico está ameaçada de despejo após o leilão - Divulgação
Comunidade Mundico está ameaçada de despejo após o leilão Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

10/05/2022 04h00

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O território onde vive a comunidade quilombola Mundico, no município de Santa Helena (MA), está com leilão marcado pela Justiça Estadual para pagar dívidas de um político local, que conseguiu registrar a área como sendo dele.

As terras onde moram 96 famílias descendentes de escravos têm registro de ocupação desde 1880, oito anos antes da própria abolição da escravidão (ocorrida em 1888). Foi lá que surgiu o quilombo Mundico e é onde seus descendentes moram desde então.

A comunidade é certificada pela Fundação Cultural Palmares e consta na lista da entidade —o que confirma a origem e o local dos quilombolas e permite que a terra seja titulada.

Mas a comunidade aguarda, desde 2013, que o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) avance no processo de regularização fundiária do território.

O Incra disse que processos de regularização de territórios quilombolas "obedecem a critérios definidos na legislação vigente, os quais são seguidos rigorosamente pelo Incra". O órgão, porém, não citou prazo para avançar com o processo da comunidade. Procurada, a Fundação Palmares não respondeu a reportagem. A Superintendência Regional do Incra no Maranhão afirma que não recebeu nenhuma manifestação formal.

Impasse

Mesmo com a comunidade oficialmente reconhecida, a área apareceu agora como sendo de propriedade de Luiz Henrique Diniz Fonseca, ex-prefeito de Porto Rico (MA). Não se sabe quando ou como ele registrou o local, já que teoricamente isso não seria possível.

O terreno foi parar agora em um leilão porque o político foi executado na Justiça a pagar uma dívida de R$ 153 mil a um empresário de São Luís. A coluna tentou, por quatro dias, localizar o ex-prefeito Luiz Diniz, mas não conseguiu. Nem sequer na parte pública do processo consta o nome do advogado dele. O espaço está aberto, caso Diniz deseje comentar a reportagem.

O processo corre no 4º Juizado Especial Cível da Capital, que penhorou a área e determinou que seja leiloada para quitar o débito (ou apenas parte dele).

O lance mínimo está em R$ 158 mil. Caso não haja comprador, está agendado um segundo leilão para sete dias depois, com lance mínimo de R$ 79 mil.

Inicialmente, o primeiro leilão estava marcado para o dia 5, mas o evento foi adiado porque a empresa de leilões não conseguiu informação da intimação dos credores para acompanharem o processo.

Clima de tensão

A notícia de que as terras estão registradas em nome do político assustou os quilombolas, que temem serem despejados. A luta agora é para que o leilão não ocorra.

"O clima aqui ficou meio tenso. Você saber que a comunidade onde você nasceu e tem toda a sua história vai ser vendida é muito triste; você sabe que será despejado e não tem para onde ir", conta Raimundo Ribeiro, 39.

O quilombola Paulo Gonçalo, 69, conta que em toda sua vida nunca tinha ouvido falar que o terreno em que está o quilombo teria outro dono. Ele relata que seus antepassados viveram ali, sem que nunca se tenha dado notícia de posse externa do local.

"Nasci, me criei e formei minha família aqui. Na minha vida tinha ouvido falar de um homem que cercou uma área próxima para seu gado não avançasse, mas nunca se falou em dono das terras porque a gente sempre esteve lá", afirma.

Segundo o advogado Rafael Silva, assessor jurídico da CPT (Comissão Pastoral da Terra) no Maranhão e que representa as famílias locais, a comunidade vai entrar com recurso, os embargos de terceiro, para mostrar ao judiciário que as terras têm dono e não podem ser leiloadas.

"Esse tipo de recurso é para pessoas com posse, propriedade ou direito sobre um bem que está sendo diretamente afetado por uma decisão judicial envolvendo outras pessoas", explica.

Nesse caso, o leilão do imóvel decorre de uma dívida que o Luiz tem com o empresário, mas que diz respeito apenas a eles. Na medida em que vai a leilão, o arrematante vai querer não só o título, mas também a posse do local --o que vai afetar o direito da comunidade
Rafael Silva, advogado CPT

Agricultor trabalha na comunidade quilombola - Divulgação - Divulgação
Agricultor trabalha na comunidade quilombola
Imagem: Divulgação

Ainda segundo Rafael Silva, para se mostrar dono da área, o ex-prefeito apresentou um título imobiliário registrado em cartório. "Estamos levantando as informações [de como ele conseguiu], mas não existem coordenadas específicas que deem a localização exata da área. É um documento bem fácil de ser usado para grilagem de terras", diz.

Entretanto, Silva diz que é possível saber que se trata do local porque o documento específica uma área na região com 191 hectares. "Ou seja, o quilombo tem 200 hectares. É uma área referente a ela. A própria comunidade relata, em seu histórico em que pede a certificação, que área já foi alvo de grilagem e cita inclusive o ex-prefeito", afirma.

Para comprovar que a terra tem dono há mais de um século, o advogado vai apresentar documentos históricos e a certificação da Fundação Palmares. "É uma comunidade que tem direito a regularização fundiária de titulação quilombola, conforme prevê a legislação. Eles têm direito à propriedade definitiva dessa área", assegura.