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Carlos Madeiro

REPORTAGEM

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Policiais de esquerda relatam tensão nas corporações: 'Visto como traidor'

Pedro Chê defende a quebra de estereótipos dos policiais de esquerda - Arquivo pessoal
Pedro Chê defende a quebra de estereótipos dos policiais de esquerda Imagem: Arquivo pessoal

Colunista do UOL

17/07/2022 04h00

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A morte do guarda municipal Marcelo Arruda, em Foz do Iguaçu (PR), na semana passada, acendeu um alerta nas corporações de segurança pública. Antes de ser alvejado a tiros em sua festa de aniversário por um policial penal bolsonarista, ele prenunciou em uma palestra que os policiais seriam "as primeiras vítimas" da intolerância política.

"O que ele falou nesse próprio evento é que policiais de esquerda como ele seriam as primeiras vítimas numa eventual escalada autoritária no país. Eles seriam os primeiros a cair, segundo ele explicou no seminário, para evitar que repassassem conhecimento estratégico a uma resistência democrática", contou Fábio Aristimunho Vargas, que também esteve no evento.

Profissionais com posições políticas à esquerda reconhecem como o bolsonarismo está entranhado nas polícias Civil e Militar. Falaram à coluna dessa tensão no trabalho e dos riscos de ruptura institucional.

Pedro Chê, policial civil e líder do movimento de policiais antifascistas no Rio Grande do Norte, afirma que a vida de um policial de esquerda é a "de um sobrevivente".

"Na maioria das vezes, somos considerados traidores, porque somos as pessoas dentro do sistema que apoiaria, digamos, o lado 'do mal': os direitos humanos, os partidos de esquerda. Isso, para eles, seria como apoiar, por fim, a bandidagem", diz.

Ele dirige hoje parte de uma rede nacional de policiais que tentam quebrar estereótipos falsos imputados aos profissionais de esquerda. E diz que eles têm sido bem-sucedidos: "Aos poucos".

Chê afirma que alguns policiais que votaram e chegaram a fazer campanha pela eleição de Jair Bolsonaro em 2018 já pensam em mudar o voto. "O bolsonarismo hoje nas polícias é menor, mas não podemos dizer o mesmo do conservadorismo", afirma.

Ele vê uma mudança na perspectiva eleitoral em comparação a 2018, mas diz que isso "não é como uma ponte que leva de um lado para o outro". "Tem muita gente nem-nem, que pensa na terceira via, por exemplo. Tem outros que fizeram a migração [para votar no PT], mas é mais tímido, não farão campanha com entusiasmo para Lula como houve para Bolsonaro em 2018", conta.

Segundo ele, a mudança nos votos aconteceu porque, apesar de Bolsonaro sempre falar em apoio aos policiais, as mudanças não melhoraram os ambientes e a vida deles.

Ele vem, tira foto com o praça ou com o agente, mas o compromisso político dele não é com a base, é com as castas superiores --basta ver como ele tratou as Forças Armadas em seu governo."
Pedro Chê, policial do RN

Ato no Rio, em 30 de maio de 2019, de policiais antifascismo - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Ato no Rio, em 30 de maio de 2019, de policiais antifascistas
Imagem: Arquivo pessoal

A coluna também ouviu essa crítica de dois policiais rodoviários federais, que não quiseram ser identificados. Eles afirmaram que há uma insatisfação generalizada da tropa com Bolsonaro pela forma como ele tratou a categoria.

"A questão é que nossas demandas não foram atendidas, mas todos viram que ele atendeu as Forças Armadas. Tem um ou outro policial rodoviário ainda bolsonarista raiz, mas a maioria hoje é totalmente insatisfeita e não vota mais nele", disse um deles.

Medo após morte de Marcelo Arruda

O cabo reformado Moreno Sérgio, da PM (Polícia Militar) do Maranhão, afirma que os ataques de Bolsonaro e seus aliados contra a esquerda irritaram policiais.

"O que o Bolsonaro fala é essa idiotice ambulante que nós queremos liberação das drogas para todo mundo, que queremos bagunça e balbúrdia. Isso não é verdade. Nós estamos trabalhando em várias frentes em todo o país para demonstrar que essa estrutura bolsonarista pressupõe uma polícia retrógrada, truculenta", afirma.

Ele ainda afirma que a morte de Marcelo Arruda pode não acabar não sendo a única, já que o clima de tensão está instalado e deve aumentar até o dia da votação, em outubro.

Eu prevejo que não será uma situação pontual, porque foi instituída a luta do 'nós contra eles', de que todo 'canhoto é bandido, gosta de vagabundo'. Os ânimos estão propositalmente se acirrando através do senhor Jair Messias Bolsonaro. Estamos adentrando num momento crítico."
Moreno Sérgio, cabo reformado da PM do Maranhão

Marcelo Arruda (esq) foi morto a tiros pelo policial penal Jorge Guaranho (dir), que invadiu a festa temática do PT  - Arte/UOL - Arte/UOL
Marcelo Arruda (esq) foi morto a tiros pelo policial penal Jorge Guaranho (dir), que invadiu a festa temática do PT
Imagem: Arte/UOL

Risco de golpe?

Um ponto de atenção é como se posicionariam as polícias em caso de uma tentativa de golpe. O coronel Luciano Silva, que já foi comandante da PM de Alagoas, afirma que as corporações estão protegidas, porque respondem a outra esfera de poder.

"Eu não vejo risco de as PMs, enquanto instituição, embarcarem em qualquer golpe. São órgãos do estado, os governadores e outros Poderes também têm o controle. Elas não embarcam [em golpe], quanto a isso não tenho medo. Um ou outro policial tenta colocar na sociedade esse discurso de ódio e de terror, mas não há essa perspectiva", diz.

Coronel Luciano Silva, da PM-AL, diz não ver risco de embarque institucional de corporações em golpe - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Coronel Luciano Silva, da PM-AL, diz não ver risco de embarque institucional de corporações em golpe
Imagem: Arquivo pessoal

No Pará, o cabo reformado Luiz Fernando Passinho ressalta que há algumas explicações que ajudam a entender por que as polícias são dominadas pelo bolsonarismo.

"Os discursos dele são fáceis, ele aponta para onde dói e grita —apesar de não fazer nada de útil. Mas é uma coisa que a esquerda infelizmente não faz. Ficamos de lado", afirma.

Qualquer recruta de 18 anos é tratado como uma reencarnação do [coronel do Exército Carlos Alberto] Ustra automaticamente após fazer o concurso. Por isso o discurso dele agrada."
Luiz Passinho, da PM do Pará

Para ele, porém, a maior proteção dessas tropas contra uma eventual aventura golpista é que as corporações são ligadas aos governos do estado, não ao federal.

"Apesar das opiniões mais conservadoras, os comandantes são nomeados pelos governadores e não vão se contrapor ao governo por causa de um discurso de Bolsonaro, até porque eles não têm benefício nenhum disso."

Ele cita ainda que, apesar de os militares votarem massivamente em Bolsonaro, temem se arriscar. "O Bolsonaro não deu confiança. Temos aí os casos recentes do Ceará e do Espírito Santo em que os policiais foram punidos por fazerem manifestações. Apesar de o bolsonarismo atiçar esses movimentos, não houve ação para evitar as punições", relata.

"Eles vão bater palma, mas, se fosse para se arriscar, já teriam feito isso no 7 de Setembro do ano passado", completa.

A delegada Maria Nysa, da Polícia Civil do Paraná, tem uma visão mais pragmática quando o tema é golpismo.

Delegada Mayra é pré candidata a deputada estadual pelo PT - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Delegada Mayra é pré candidata a deputada estadual pelo PT no Paraná
Imagem: Arquivo pessoal

"Não precisa de muita coisa para prejudicar a democracia. Só precisa de um estado começar a dar problema. E o que mais me preocupa é o Rio de Janeiro. Não tenho como afirmar se haverá algo, mas essa é uma preocupação que ronda minha mente", diz.

Para ela, o melhor remédio são as próprias corporações monitorarem os grupos internamente desde já. "Esses discursos de ódio precisam ser percebidos pelo estado, que não pode deixar que fiquem fermentando nas bases."

Por fim, o cabo reformado Moreno também não vê risco hoje das polícias embarcarem em uma eventual tentativa de golpe, mas ressalta que o cenário pode mudar com a campanha eleitoral e até mesmo após a eleição com movimentos inspirados "na guerra híbrida copiada dos eleitores do Donald Trump".

Vejo que os primeiros soldados numa tentativa de golpe serão as polícias militares. Vejo isso pelo meu estado, que tem um governo de esquerda, mas toda estrutura é bolsonarista."
Moreno Sergio, da PM do Maranhão

Ele defende que isso só será freado se os Poderes e entidades empresariais se posicionarem de forma firme contra a ruptura.

"Se isso não ocorrer, fatalmente teremos [ações golpistas], até mesmo pelas manifestações do comandante do Exército e as manifestações do ministro da Defesa. Estão partidarizando uma questão muito perigosa", finaliza.