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Carlos Madeiro

REPORTAGEM

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Governo Bolsonaro corta e para maior programa de acesso à água do Nordeste

Ivone da Silva pega água suja de dois em dois dias a 4 km de sua casa, em Jacobina (BA) - Arquivo pessoal
Ivone da Silva pega água suja de dois em dois dias a 4 km de sua casa, em Jacobina (BA) Imagem: Arquivo pessoal

Colunista do UOL

25/09/2022 04h00

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A agricultora Ivone Valéria da Silva, 45, precisa andar 4 km da sua casa até um pequeno barreiro na comunidade Itapeipu, em Jacobina, no sertão baiano, para buscar água. Sem uma cisterna em casa, ela e o marido, Julivaldo de Jesus, 38, fazem esse trajeto a cada dois dias.

"Temos um jegue e uma charrete para isso. Uso essa água para beber, cozinhar e tomar banho", conta ela, mostrando a água com aspecto sujo que armazena em um galão com capacidade para apenas 200 litros.

Ao longo dos quatro últimos anos, o governo federal reduziu e em 2022 praticamente parou as construções de cisternas, tecnologia fundamental para garantir o acesso à água a famílias que convivem com a seca.

As cisternas para uso humano são grandes caixas de água com capacidade para armazenar 16 mil litros de água da chuva ou aquela colocada por carros-pipa (em épocas de seca). No caso, para armazenar água da chuva, são instaladas calhas ao longo do telhado que despejam o líquido diretamente na cisterna.

Nos últimos meses, o governo tem executado apenas contratos antigos ou feito cisternas com verbas destinadas por emendas parlamentares.

Em junho, o programa entregou apenas 18 equipamentos, o recorde negativo desde que ele foi lançado, no final de 2003.

Entre 2003 e de 2018, o governo federal entregou 929 mil cisternas de água para consumo humano (além desse tipo, há ainda as cisternas para produção e escolares, ambas com capacidade de guardar 52 mil litros de água).

No governo de Jair Bolsonaro (PL), de janeiro de 2019 até junho deste ano, foram apenas 37,6 mil. O número de equipamentos entregues vem caindo a cada semestre desde 2018.

O pequeno número de obras tem relação direta com o baixo nível de investimento federal. Além de colocar menos dinheiro no orçamento, o governo não vem executando os valores previstos.

Em 2020, por exemplo, foram orçados R$ 74,7 milhões, mas apenas R$ 2,5 milhões foram executados. Neste ano, até o dia 21, apenas R$ 160 mil foram executados.

Gastos com cisternas:

2019

  • Projeto de lei: R$ 75.000.000
  • Executados: R$ 67.048.067

2020

  • Projeto de lei: R$ 74.700.000
  • Executados: R$ 2.557.629

2021

  • Projeto de lei: R$ 61.242.000
  • Executados: R$ 32.238.447

2022

  • Projeto de lei: R$ 37.072.015
  • Executados: R$ 160.611*

* Até 21/09
Fonte: Siga Brasil/Senado

Para 2023, o PLOA (Projeto de Lei Orçamentária Anual) enviado por Bolsonaro ao Congresso traz um orçamento ainda mais reduzido: R$ 2.283.326, o que paga menos de 500 equipamentos —que custam em média R$ 5.000 entre mão de obra e material.

A coluna procurou o Ministério da Cidadania para que comentasse sobre a redução do orçamento e de entrega de cisternas, mas ele não enviou resposta até a última atualização deste texto.

À espera de uma cisterna

A falta de uma cisterna traz problemas a quem vive no semiárido. Ivone da Silva conta que a água que traz do pequeno barreiro ainda serve para manter uma pequena plantação de pés de acerola, banana, tomate e coco.

Sem cisterna a dificuldade é muito grande, não dá para plantar muita coisa. Quando não é época de estiagem, ainda pego água aqui do lado, no tanque aqui dos meus vizinhos. Mas essa época de seca é sofrimento."
Ivone da Silva, agricultora

Sem alavancar as plantações pela falta de água, ela não consegue produzir em quantidade suficiente para vender e aumentar sua renda. Por isso, a família dela —que inclui na mesma casa um filho de 17 anos e um neto de 9— sobrevive apenas do Auxílio Brasil.

A realidade de Ivone é a mesma de outras famílias no semiárido do Nordeste. A aposentada Maria José da Silva, 62, tem uma rotina também pesada.

"Minha vida é todo dia pegar uma carroça ou um carro de mão e ir buscar água e trazer de balde em balde. Começo às 5h da manhã e só termino às 10h", conta ela, que mora com o marido.

Cansada de esperar por uma cisterna, decidiu aderir a um custeio de uma minicisterna de 6.000 litros, que é feita pelo grupo Fundo Rotativo Solidário.

O equipamento dela, mais simples e barato, custa R$ 935. Com a aposentadoria de um salário mínimo que recebe, ela vai destinar contribuição mensal de R$ 30 até restituir o valor da cisterna.

Ela agora conta os dias para a obra ficar pronta. "Falta muito pouco, vai ser uma coisa boa demais para nós. Graças a Deus, porque vou ter água aqui para beber, lavar roupa e tomar banho", comemora.

Mini cisterna feita para Maria: R$ 935 que serão devolvidos em parcelas de R$ 30 mensais - Nirley Lira/ASPTA/Divulgação - Nirley Lira/ASPTA/Divulgação
Minicisterna feita para Maria: R$ 935 que serão devolvidos em parcelas de R$ 30 mensais
Imagem: Nirley Lira/ASPTA/Divulgação

Programa premiado

O Programa Cisternas é uma referência mundial e recebeu prêmios internacionais como o Prêmio Sementes 2009, da ONU (Organização das Nações Unidas), concedido a projetos de países em desenvolvimento feitos em parceria entre organizações não governamentais, comunidades e governos.

Também recebeu também a premiação "Future Policy Award" (Política para o Futuro), em 2017, da World Future Council, em cooperação com a Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação.

As cisternas são a única modalidade de acesso e desconcentração da água para as populações esparsas do semiárido. O programa significou a libertação de milhões de pessoas. Alocar R$ 2 milhões no orçamento é dizer às 350 mil famílias que ainda necessitam de cisternas que permaneçam sedentas."
Naidison Baptista, coordenador da ASA na Bahia

Cisterna instalada em Palmeira dos Índios, em Alagoas - Beto Macário/UOL - Beto Macário/UOL
Cisterna instalada em Palmeira dos Índios, semiárido de Alagoas
Imagem: Beto Macário/UOL

Em artigo publicado em dezembro de 2021, o pesquisador César Nunes de Castro, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), afirmou que o Programa Cisternas contribuiu decisivamente "para a consecução das metas do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 6, tratado internacional do qual o Brasil é signatário".

"Entre as metas do ODS 6, a mais abrangente destas refere-se à universalização do acesso à água, e, nesse sentido, é inegável que a contribuição do programa é significativa, especialmente ao considerar-se que a área de atuação prioritária do programa é o semiárido, região brasileira com a maior proporção de família sem acesso a fontes seguras e regulares de água", diz.

A ideia de construir 1 milhão de cisternas no semiárido é de 1999 e foi lançada pela ASA (Articulação do Semiárido), uma organização que congrega mais de 3.000 entidades da região.

Somadas as cisternas pagas com verba pública e de entidades, a meta foi alcançada em 2014, e hoje existem na região mais seca do Brasil 1,2 milhão de cisternas construídas.