Homem pinta gravuras pré-coloniais no AM, revolta arqueólogos e se desculpa
Gravuras rupestres feitas por indígenas pré-coloniais às margens do rio Negro, em Manaus, foram pintadas por um historiador na terça-feira (24). O ato foi criticado por pesquisadores da área e pelo Iphan (Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional) porque foi feito sem autorização e sem uso de técnica adequada.
As gravuras, que ficam no sítio arqueológico de Lajes, foram feitas por indígenas que habitaram a Amazônia entre 1.000 e 2.000 anos atrás. Como elas só aparecem nas secas, e esta é a mais intensa já registrada na história do rio Negro, o local está sendo visitado constantemente.
As fotos das gravuras com tinta branca foram postadas e repercutiram nas redes sociais, com várias manifestações de repúdio. Após o caso, o autor das pinturas Otoni Moreira de Mesquita, 70, pediu desculpas pelo ocorrido e disse que lavou as pinturas logo após o caso.
Entenda o que aconteceu
As fotografias da visita ao sítio foram publicadas no perfil Manaus de Antigamente, na rede social X (antigo Twitter), e por uma outra internauta.
Em carta à sociedade, Otoni afirma que fez a pintura na gravura porque ela "se encontra localizada num local de penumbra dentro de uma pequenina caverna nas pedras.
Considerando a raridade do fato histórico, e antevendo que se trate de uma oportunidade rara, procurei recursos técnicos para realizar o registro. Ciente de que se tratava de um procedimento que não causaria risco ou dano, nem se constituiria uma agressão ao bem artístico e cultural, eu tinha, portanto, a pretensão de ressaltar os atributos da obra primitiva. Por isso, procurei utilizar um método que evidenciasse o contraste das incisões que definem a face gravada no sentido parietal.
Otoni Moreira de Mesquita
Ele explica que usou um pincel de pelo, aplicando caulim, que é um uma argila natural de coloração branca, e que não poderia "intervir e agredir a obra."
Esse é um método que era bastante aplicado em intervenções arqueológicas para ressaltar traços de incisões, quando os pesquisadores fazem registro de sítios com incisões rupestres.
Otoni Moreira de Mesquita
Por fim, ele se desculpa do ato:
Peço, portanto, que tentem compreender o fato, a partir do ponto de vista do interesse acadêmico, pois um registro pode contribuir com futuras interpretações. Em momento algum pretendi agredir a obra, ou ferir a memória de nossa ancestralidade. Peço minhas sinceras desculpas àqueles que, por alguma razão, se sentiram ofendidos com a adoção do meu método de investigação, que está dentro dos pressupostos de formação acadêmica
Otoni Moreira de Mesquita
Crime contra o patrimônio
O UOL consultou o Iphan, que afirmou que qualquer pesquisa com intervenção em um sítio arqueológico sem permissão do órgão "é ilegal e passível de punição nos termos da lei". Crimes contra o patrimônio natural e cultural têm penas que variam de 1 a 3 anos de prisão e multa.
Todos os bens arqueológicos pertencem à União, sendo que a legislação veda qualquer tipo de aproveitamento econômico de artefatos arqueológicos, assim como sua destruição e mutilação.
Iphan
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Quero receberO Iphan afirma que procurou as autoridades competentes "para evitar possíveis danos aos bens arqueológicos". A Polícia Federal, o Batalhão de Polícia Ambiental e a Secretaria Municipal de Segurança Pública, segundo o órgão, vão ajudar com patrulhamento "de modo a impedir qualquer dano ao Patrimônio Cultural brasileiro."
Pesquisadores alertam para danos
Absurdo o vandalismo com o patrimônio arqueológico. A Lei 3924/61, no seu artigo 5º mostra que só é possível realizar intervenção arqueológica profissionais com larga experiência. Esse grupo praticou crime ao patrimônio arqueológico. Não se usa nada para não descaracterizar as feições arqueológica. Pode fotografar medir. Mas qualquer medida pode cair em perturbar os vestígios...
Carlos Augusto da Silva, professor da Ufam
Helena Pinto Lima, pesquisadora do Museu Paraense Emílio Goeldi, também explica que ações sem acompanhamento de especialistas, mesmo que desprovidas de má intenção, podem afetar ou até mesmo comprometer futuros estudos. Ela diz que desconhece o método usado pelo historiador.
Essas gravuras estiveram submersas em ambiente estável por milhares de anos, e só o fato de estarem agora expostas já pode alterar seu estado de conservação. A reação do pigmento utilizado, mesmo que seja natural, é desconhecida e pode sim acelerar a deterioração das gravuras.
Helena Lima, doutora em arqueologia pela USP
Segundo o Iphan, está em execução no local um plano de ação para pesquisar e cadastrar sítios arqueológicos no Amazonas.
Com isso, pretende-se produzir conhecimento sobre o patrimônio arqueológico da região amazônica, promovendo, ao mesmo tempo, ações educativas que, também, são uma forma de prevenir futuros prejuízos a esses bens.
Iphan
O Iphan ainda afirma ainda que adotou outras providências, como a confecção de um plano emergencial devido à estiagem, com um grupo de trabalho para gestão compartilhada do sítio.
Como é o sítio de Lajes
As gravuras do rio Negro já eram de conhecimento dos arqueólogos e foram registradas como sítio arqueológico pelo Iphan em 1968.
Elas são uma expressão fortíssima de como esses povos viram e representaram elementos importantes de suas culturas. Esse complexo arqueológico se situa justo à frente do encontro das águas, lugar de muita potência em diversos sentidos, desde os tempos antigos até hoje em dia.
Helena Pinto Lima
O sítio é parte de um complexo arqueológico maior, que vai do lado oeste do rio Amazonas até a parte amazônica da Colômbia.
Essas gravuras são símbolos históricos antigos em que os povos utilizavam as rochas para registrar seus comportamentos sociais. Também pode refletir que é possível que os registros representem comportamento socioambiental humanizado, em que a água, a terra e a floresta eram como irmãos. Havia zelo pela vida.
Carlos Augusto da Silva
Os pesquisadores afirmam que o local fica próximo a grandes aldeias já conhecidas do período pré-colonial. Na região já foram achadas peças de cerâmica, e por isso acredita-se que se trata dos mesmos povos.
Os desenhos são relativamente parecidos com algumas decorações de cerâmica, o que pode ter relação estilística. Trata-se de figuras cefalomórfãs (em formato de cabeça) gravadas na pedra. Podemos constatar que são gravuras em pedras mas também indicam oficinas líticas, para fabricação de ferramentas.
Filippo Stampanoni Bass, do Museu da Amazônia
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