Sem cirurgias, crianças com microcefalia por zika sofrem com dores intensas
Crianças com microcefalia gerada pela Síndrome Congênita Associada ao Vírus Zika estão sofrendo com problemas ortopédicos graves. Hoje, essa geração de meninos e meninas tem entre 7 e 9 anos.
Mães e entidades denunciam que cirurgias para corrigir ou mesmo amenizar as intensas dores que elas sofrem não estão sendo feitas em alguns estados do Nordeste, o que tem causado deformidades ainda mais graves e até mortes.
A fila simplesmente não anda, não existe prioridade. A impressão é que, para ele [poder público], se nossos filhos morrerem, é menos um. É triste ver uma criança chorando noite e dia de dor e não ter remédio nem para amenizar. É desesperador.
Luciana Martins Arrais, presidente da Unizika (união de mães de crianças com microcefalia)
Em 2015, um aumento inexplicado de casos de microcefalia em Pernambuco chamou a atenção do mundo. Pesquisas apontaram que eles estavam relacionados ao vírus zika, o que levou a OMS, em 2016, a decretar emergência em saúde pública internacional.
Após seis anos de queda, o número de casos prováveis voltou a subir em 2023, segundo o Ministério da Saúde.
Situação crítica em PE
Milena Carneiro da Paixão, 36, é mãe de Davi, 8, que tem uma luxação (lesão na qual uma articulação é deslocada da posição normal) no quadril e escoliose (um desvio na coluna), dois dos mais comuns dos problemas nessas crianças.
Moradora do Recife, ela diz que há quase cinco anos tenta as cirurgias necessárias para correção, mas não conseguiu e a situação de Davi só piora.
Ele precisa das cirurgias urgentes. Davi sente muita dor no quadril, a gente não consegue trocar a fralda dele; o banho nele é difícil. O remédio para a dor alivia, mas não passa totalmente, e ele só consegue ficar em uma única posição.
Milena
Segundo ela, como efeito colateral da demora e do tempo em demasia deitado, Davi tem uma respiração ofegante, e agora ele precisa dormir com um aparelho, o BiPAP, que auxilia na respiração.
De acordo com Germana Soares, presidente da União de Mães de Anjos de Pernambuco, só em Pernambuco são 135 crianças à espera de cirurgia ortopédicas.
Para chamar a atenção sobre o caso, ela gravou um vídeo no final de março e, nas redes sociais, marcou autoridades locais e federais.
O Ministério da Saúde entrou em contato dizendo que o presidente em pessoa recebeu o vídeo; e no outro dia ele (Lula) falou sobre a melhora dele com a cirurgia do quadril, já que ele sentia dor havia três anos.
Germana
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Quero receberEm nota, a Secretaria Estadual de Saúde diz que vem mantendo contato com as entidades e com as mães e informou que comprou, de forma emergencial, placas cirúrgicas para esses pacientes que estão na fila de espera.
No momento, [elas estão] em processo de avaliação técnica dos itens. A expectativa é que os procedimentos comecem a ser realizados ainda neste primeiro semestre de 2024.
Secretaria de Saúde de PE
Demora deforma e pode levar à morte
O ortopedista Epitácio Leite Rolim Filho, do hospital Getúlio Vargas e da AACD em Pernambuco, acompanha essas crianças desde o nascimento, ainda quando se sabia pouco sobre as causas.
O médico, que também é professor da UFPE, explica que estudos de acompanhamento na parte ortopédica apontam para as subluxações dos quadris dessas crianças desde 2017.
Alguns deles já nasceram com quadril luxado, mas existe a luxação secundária, decorrente das alterações neurológicas pela microcefalia. Em 2018 a gente tentou fazer um mutirão cirúrgico, mas não conseguiu. Depois entrou a pandemia e até então agora esses pacientes só pioram.
Epitácio Filho
O médico explica que, quando a luxação não é tratada, ela leva à destruição da cabeça do fêmur das crianças e, consequentemente, a outras deformidades severas.
Isso é altamente incapacitante; muitos já apresentam escoliose associada. Além de dificultar o manuseio da mãe, a dor é um gatilho para as convulsões. E eles não conseguem sequer sentar por conta da dor. Eles ficam deitados, levando a broncoaspiração [líquido para dentro do pulmão], gerando pneumonia de repetição. Isso é comum e até leva à morte.
Epitácio Filho
Com as cirurgias, o ortopedista explica que a medicina tenta dar uma qualidade de vida a esses pacientes, embora a demora tenha causado problemas mais severos.
Depois desse tempo, alguns há mais de 5 anos, o quadril luxado encontra-se desgastado. Agora é uma cirurgia que nós chamamos de salvamento, que é ressecar e tirar a cabeça do osso para tirar a dor e fazer outros tipos de procedimentos. O certo era não deixar chegar a tal situação.
Epitácio Filho
AL e PB também tem problemas
Em Alagoas, Alessandra Hora, presidente da associação Famílias de Anjos, afirma que as crianças estão "esquecidas" pelo poder público e que tratamentos que deveriam ser permanentes, por conta das fortes dores geradas pelos problemas ósseos, não estão sendo feitos.
Isso não foi por falta de cobrança: levei documento ao Governo do Estado, ao Tribunal da Justiça, ao Ministério Público, às defensorias, mas nada avançou! Mandei ofício agora ao Ministério da Saúde. Muitas já estão afastadas dos atendimentos porque não aguentam mais fisioterapia. O destino delas é atrofiarem mais.
Alessandra Hora
Williane Rafaella da Silva, 27, que mora em Maceió, diz que aguarda há dois anos a cirurgia para tratar a filha Laryssa, 8, com escoliose grave.
Quando eu boto ela na cadeira de rodas, ela sente dor, não consegue ficar muito tempo e chora. O caso dela é de cirurgia, mas não consigo marcar de jeito nenhum. O médico já disse que ela não consegue fazer esforço porque sente dor. Se um adulto com dor na coluna é insuportável, imagine uma criança que não sabe falar? É muito triste.
Williane
Em nota, a Secretaria de Estado da Saúde afirma que "tem realizado as cirurgias ortopédicas nas crianças com microcefalia que necessitam de assistência ortopédica na rede SUS."
Para agilizar o procedimento, algumas são atendidas ambulatorialmente em Alagoas e, posteriormente, encaminhadas para o Hospital Sarah, em Salvador, com o traslado e ajuda de custo financiados pelo programa Tratamento Fora de Domicílio (TFD).
Secretaria de Saúde de AL
O diretor administrativo do Ipesq (Instituto de Pesquisa Professor Joaquim Amorim Neto), Romero Moreira, afirma que também há dificuldades na Paraíba, mas relata que há problemas também para especialistas chegarem à conclusão sobre o melhor tipo de tratamento.
Eu tenho indicação para [cirurgia] de 40 crianças aqui do meu grupo, mas o problema não é só o fato de você conseguir a cirurgia, mas também escolher um método correto, porque são casos muito graves. Em algumas vezes, os ortopedistas pediram a cirurgia, mas tivemos casos de resultados não tão bons.
Romero Moreira
A Secretaria de Saúde da Paraíba informou que as crianças estão sendo acompanhadas por rede multidisciplinar, e as cirurgias realizadas de acordo com a necessidade.
Das 40 crianças mencionadas, 19 estão em acompanhamento e aguardam condições clínicas para realização de cirurgias ortopédicas. Não há demanda reprimida em relação à pandemia. A questão envolve apenas a condição clínica das crianças para a realização de procedimentos.
Secretaria de Saúde da PB
Mãe se endivida e paga cirurgia
Sem conseguir cirurgia pelo SUS, mães que têm acesso à crédito acabam contraindo empréstimos de valores altos para custear as operações. Uma delas, que preferiu não ter o nome identificado na reportagem, mostrou um recibo de R$ 25 mil somente por uma primeira cirurgia do quadril feita em 2019 em Salvador.
Além disso, ela - que recebe apenas um benefício de salário mínimo do governo - conta que só consegue acesso a serviços e terapias apenas porque tem procurado a justiça.
Foram quatro cirurgias, e esse ano tem outra para retirar a placa de titânio do quadril. Minha filha só não está desnutrida ou com deformidades porque eu vivo no tribunal e porque existe um pai que custeia suas necessidades básicas.
Procurada, a Secretaria de Saúde da Bahia não respondeu.
Ministério promete verba
Em nota, o Ministério da Saúde explicou que tem feito um esforço com o Programa Nacional de Redução das Filas de Cirurgias Eletivas, lançado em março de 2023, e que financiou 665 mil cirurgias adicionais entre março de 2023 e janeiro deste ano.
Para 2024, a pasta diz que a meta é realizar mais 1 milhão de cirurgias extras, com investimento de R$ 1,2 bilhão para apoiar estados e municípios na realização de cirurgias eletivas.
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