Conteúdo publicado há 3 meses
Carlos Madeiro

Carlos Madeiro

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Reportagem

Modelo de avião que caiu já perdeu controle por gelo em voo, aponta Cenipa

Pilotos de um avião modelo ATR 72, o mesmo que caiu em Vinhedo (SP) na sexta-feira, perderam o controle do voo após enfrentarem uma formação de gelo e declararam emergência no ar durante um voo entre Maceió e Salvador em 2013.

As informações constam em um relatório do Cenipa (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos) de 4 de outubro de 2021, obtido pela coluna. O documento foi produzido após o órgão realizar uma extensa investigação do que ocorreu com a aeronave durante a viagem.

O Cenipa classificou o caso como um "incidente grave" que teve "múltiplos fatores contribuintes". Na investigação, os técnicos apontaram para três determinantes, que levaram à perda de controle:

  • Condições meteorológicas adversas;
  • Decisões equivocadas da tripulação;
  • Potenciais falhas e fatores de manutenção e projeto.

A condição de formação de gelo em rota também foi encontrada pelo ATR 72 que caiu em Vinhedo. Esta tem sido uma hipótese levantada por especialistas como possível contribuinte para a queda do avião. O acidente, porém, continua sendo investigado e não há qualquer conclusão até o momento.

Vista aérea dos destroços de um avião que caiu com 61 pessoas a bordo em Vinhedo
Vista aérea dos destroços de um avião que caiu com 61 pessoas a bordo em Vinhedo Imagem: MIGUEL SCHINCARIOL/AFP

Rota no Nordeste

O voo em questão ocorreu no dia 26 de julho de 2013. A companhia aérea que o operou foi a extinta Trip, que fundiu operações com a Azul um ano antes. Assim como na aeronave da Voepass, o avião levava quatro tripulantes e 58 passageiros. No caso, porém, a aeronave pousou em segurança e ninguém se feriu.

O céu naquela noite estava nublado a encoberto, com nuvens e cristais de gelo. O voo seguiu sem problemas até a altitude de cruzeiro (16.000 pés), voando a uma velocidade de 202 nós (354 km/h).

Continua após a publicidade

O voo decolou às 18h10 e tudo ia bem até 18h37, quando a tripulação identificou "formações meteorológicas" e discutiu a necessidade de desvios na rota.

Na conversa entre piloto e copiloto, eles demonstram dúvidas sobre os dados apontados no radar meteorológico. Sete minutos depois, eles percebem uma formação de gelo. A partir daí, tem início uma sequência de 13 minutos de problemas, que levaram à emergência na aeronave. Veja a sequência:

  • 18h48 - Comandante observa a queda de velocidade da aeronave (estava em torno de 185 nós) devido à formação de gelo. A tripulação, então, solicita desvios à esquerda para fugir de mau tempo.
  • 18h49 - Comandante entrega o voo ao copiloto.
  • 18h53 - Copiloto aciona as luzes de "atar cintos" e solicita desvio de rota à esquerda.
  • 18h54 - Gravador de voz da cabine registra som semelhante ao de voo em uma região com chuva. Comandante retorna à cabine e reassume o controle.
  • 18h59 - Gravador registra uma forte vibração no avião. A potência dos motores é reduzida para 20% de torque, e a velocidade indicada cai para 158 nós e começa a perder sustentação. Piloto automático é desligado.
  • 19h00 - Início de vibração na cabine, aumentando progressivamente de intensidade. Motores reduzem a potência de 72% para 20%, e a velocidade chega a 148 nós.
    Nesse momento, ativa-se de forma automática a campainha de "atar cintos" e soa um alarme triplo na cabine --entre eles de estol (perda de sustentação). Copiloto declara mayday (emergência) e solicita à torre a descida da aeronave.
  • 19h01 - Acionamento dos manetes das hélices para a posição bandeira (espécie de ponto morto). Vibração para, hélices são ajustadas de volta a 82% de potência, e tripulação retoma o controle da aeronave e segue até o pouso.

Nesse pequeno intervalo de tempo entre o estol [perda de sustentação] e a recuperação, a aeronave chegou a atingir um ângulo de ataque (entre a asa do avião e o fluxo de ar) de 52°, e um ângulo lateral de 58º à esquerda. Houve uma queda de 5 mil pés de altitude.

Reprodução do voo feita pelo Cenipa da viagem entre Maceió a Salvador
Reprodução do voo feita pelo Cenipa da viagem entre Maceió a Salvador Imagem: Reprodução/Cenipa

Segundo o relatório, houve momentos em que ele foi de um lado para o outro. O problema ocorreu quando a aeronave sobrevoava o município de Esplanada (BA).

Continua após a publicidade

"A aeronave se aproximou perigosamente do seu limite crítico, o que poderia ter resultado em uma perda total de sustentação e consequente queda livre", afirma um piloto, que pediu para não ser identificado. "No meu entender, foi exatamente a situação que ocorreu [com o avião da Voepass]."

Erros e falhas

Segundo as leituras do gravador de dados, não houve mau funcionamento ou falha do motor em voo.

O Cenipa, em sua avaliação, apontou que a decisão do comandante de reduzir a potência do motor em resposta à vibração da aeronave "exacerbou a perda de velocidade aerodinâmica, levando a um estol."

A tripulação reduziu a potência do motor em vez de aplicar potência máxima, como recomendado para condições de gelo severo.
Relatório Cenipa

Ainda para o Cenipa, houve gerenciamento inadequado de tarefas e comunicação confusa na cabine, o que pode ter atrasado a tomada de decisão e a aplicação de procedimentos corretos.

Continua após a publicidade

A tripulação alegou que interpretou erroneamente a vibração como um problema com a hélice, em vez de um estol induzido por gelo, já que uma outra tripulação havia relatado problema semelhante em janeiro.

Técnicos do Cenipa (FAB) examinam caixa-preta de avião que caiu em Vinhedo
Técnicos do Cenipa (FAB) examinam caixa-preta de avião que caiu em Vinhedo Imagem: Divulgação FAB

Sistema potencialmente falho

A investigação ainda aponta que o sistema APM (monitoramento de desempenho da aeronave), projetado para alertar a tripulação sobre condições perigosas de gelo, estava inoperante durante o voo.

A tripulação relatou não ter observado qualquer indicação de que o APM se encontrava em "off". O fato de ele estar desativado sem o conhecimento dos pilotos levantou preocupação do Cenipa sobre a confiabilidade do sistema.

Antes desse voo, o livro técnico da aeronave tinha dois relatos de falha no APM, nos dias 16 e 21 daquele mês. "Em ambos os casos, foram adotadas as ações e o problema foi considerado solucionado", diz.

Continua após a publicidade
Modelo de red bug apontado pelo Cenipa em relatório
Modelo de red bug apontado pelo Cenipa em relatório Imagem: Cenipa/Reprodução

A ausência de um red bug (indicador de velocidade mínima para voo em condições de gelo) no velocímetro do comandante também pode ter prejudicado a consciência situacional, diz o Cenipa.

Fabricante tomou medidas

O relatório do Cenipa aponta que a fabricante realizou uma visita técnica à companhia aérea para esclarecer eventuais questões referentes a procedimentos de voo em condições de gelo.

O treinamento periódico dos pilotos foi reformulado após o caso, dando-se maior ênfase ao gerenciamento do voo em condições de formação de gelo na aeronave.

A ATR também identificou áreas de melhoria em termos de redação, formatação e apresentação, para facilitar a tomada de decisão da tripulação e a recuperação de informações essenciais durante o voo.

Continua após a publicidade

Sobre as falhas no indicativo do APM, a ATR disse que diz que fez extensa investigação, e que a única condição identificada seria a falha do próprio botão de alerta.

Siga UOL Notícias no

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Deixe seu comentário

Só para assinantes