Carolina Brígido

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Reportagem

'Juiz não pode ser arroz de festa em evento de banco', diz Conrado Hübner

O professor de Direito da USP (Universidade de São Paulo) Conrado Hübner Mendes lança amanhã (21) em Brasília o livro "O Discreto Charme da Magistocracia" (Todavia).

O evento está marcado para as 19h na livraria Circulares. Haverá um debate com a participação da procuradora aposentada Deborah Duprat e do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Sebastião Reis Júnior.

Crítico contumaz do comportamento de integrantes do Judiciário, Hübner Mendes concedeu entrevista à coluna.

O senhor grafou o termo magistocracia para se referir ao comportamento de parte do sistema de justiça brasileiro. Para o senhor, o Judiciário tem um problema sistêmico de abusos, ou são casos isolados?

Não são casos isolados e individuais, mas uma cultura institucional. A magistocracia é essa fração do sistema de justiça que persegue essa carreira para gozar dos privilégios de status e patrimoniais que ela oferece. Mas para isso é preciso mergulhar no teste de falta de integridade da magistocracia: é preciso ser autoritário e ignorar a filosofia de liberdade e igualdade da Constituição e ser partícipe de tragédias humanitárias brasileiras, como o encarceramento em massa; é autocrático porque, à medida que sobe nas hierarquias da justiça, deve policiar a independência judicial de juízes mais arejados das primeiras instâncias (a independência judicial "interna"); é autárquico, porque com base numa ideia soberanista de independência judicial, recusa qualquer ideia de controle social; é rentista e gasta boa parte de sua energia intelectual e institucional, para não dizer de seu estoque moral, para construir mecanismos ilegais de multiplicação a renda; e é dinástico, pois, na melhor tradição familista brasileira, precisa beneficiar os parentes (seja na carreira dentro do sistema de justiça, seja a família jurídica mais ampla, beneficiar os filhos e esposas advogadas). É também promíscuo e se recusa a reconhecer conflitos de interesse em sua convivência íntima com o poder econômico e político. Não é fácil ascender nas carreiras do sistema de justiça sem passar nesse teste de falta de integridade. Há quem consiga, mas as estruturas e tradições incentivam o contrário.

É comum ministros do STF e do STJ frequentarem festas e jantares na casa de advogados, ou aceitarem participar de eventos custeados por empresários. Esse comportamento é conflituoso com a atividade do julgador?

Esse comportamento é antiético e ilegal. Não é uma questão de etiqueta, de bom ou mau gosto, de cafonice ou elegância. É um problema do que é juridicamente e eticamente permitido. Juízes têm nos rituais de imparcialidade sua mais importante e delicada forma de proteger a confiabilidade da instituição. Quando se misturam e se refestelam nos salões do poder econômico e político, não são apenas jecas, não são apenas deslumbrados ou novos ricos, são agentes da degradação institucional. É muito caro o prejuízo que causam à instituição. Ninguém está pedindo voto de castidade nem voto de pobreza. Ninguém está proibido de ter vida social, de perseguir uma vida boa. Nem mesmo está proibido de uma vida hedonista. Mas nós sabemos que não é disso que esses eventos tratam.

Eventos desse tipo costumam ser noticiados com ares de normalidade. A imprensa deveria olhar esses casos de forma mais crítica?

A imprensa tem a virtude de pelo menos noticiá-los, descrever esses fatos. Deixa nas entrelinhas que há algo de errado ali. Mas talvez a imprensa pudesse contextualizar melhor para o leitor o descalabro ético que isso representa. A imprensa que cobre Judiciário ainda precisa conseguir diferenciar o pano de fundo normativo em que essa profissão se encaixa. Não é o mesmo que cobrir a vida de políticos e a política partidária e congressual. Há condutas que um deputado pode praticar que um juiz não pode. Mas essa distinção o jornalismo não tem feito. Na maior parte das vezes, continua a ser condescendente, mas há excelentes exceções e já estamos bem melhores em perceber problemas do que uma década atrás.

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O juiz é também um cidadão e, portanto, participa de festas e eventos sociais. Para o senhor, um juiz deve se comportar diferente de um professor, por exemplo?

"O juiz é também um cidadão" é um chavão muito engraçado, porque ele realmente chega na fronteira da desfaçatez possível. Existe um conjunto de direitos e deveres da cidadania em geral. Mas existe um conjunto de direitos e deveres de profissões específicas que criam restrições adicionais a certas funções. Não servem só para juízes, nem só para promotores. O professor universitário também tem uma série de compromissos éticos e profissionais com sua comunidade profissional. O professor também precisa se preocupar com situações de conflito de interesse, sobretudo quando ele exerce outra função econômica além daquela de professor. Portanto, o debate não tem a ver com os supostos sacrifícios que juízes e apenas juízes precisam fazer para cumprir essa profissão supostamente penosa que aceitaram exercer (das profissões públicas mais bem pagas no mundo). Tem a ver, sim, com quais restrições cada profissão tem. E a profissão de juiz tem uma bastante elementar: se você decide e tem poder de dizer o direito na resolução de conflitos estruturais da sociedade brasileira, não é conveniente ser arroz de festa em qualquer evento que a empreiteira, o banco e a federação das indústrias te convida a participar. Ser juiz assim deve ser superconfortável, pois raramente se dispõe a entrar em confronto com detentores de poder que violam a lei. Mas é isso que se pede de um sistema de justiça na democracia.

Quando condutas pouco éticas de operadores do Direito são questionadas, é comum a reação ser imediata e dura. Esse suposto recalque de juízes e advogados comprova a tese de que há autoritarismo no meio jurídico?

Há muito autoritarismo sob a pele de progressismo. A magistocracia tem um grande parceiro, que é a advocacia lobista. Eles se retroalimentam. Gostam de criar imagens públicas altissonantes, de serem associados a valores políticos majestosos como democracia e república. Mas, curiosamente, são alérgicos a críticas. E reagem de forma intimidatória. O lawfare não é exclusividade do lavajatismo (que é apenas um nome moderno para uma prática histórica e fundacional do sistema de justiça brasileiro). O preto, pobre e vulnerável sempre foi vítima de lawfare, e com muito mais violência. A trágica ironia dessa história recente é que parte do grupo que se proclamou como antilavajatismo, como símbolo de luta pelo progresso e liberdade, revelou-se adepto das mesmas práticas autoritárias para perseguir seus interesses. Podemos chamá-los, sem medo de erro conceitual ou categórico, de neolavajatismo.

O senhor é professor de Direito da USP e, portanto, tem alguma autoridade para criticar magistrados. No entanto, não é comum vermos a academia se posicionar sobre esse tema. O senhor é criticado por colegas da USP?

Nunca fui criticado por colega da USP. Pelo contrário: quando fui processado criminalmente pelo ex-Procurador Geral da República, Augusto Aras, a Faculdade de Direito da USP organizou uma manifestação de desagravo, com manifestação de dezenas de professores, a Congregação da Faculdade de Direito aprovou uma moção de apoio, um abaixo-assinado de toda USP coletou em poucos dias quase 4 mil assinaturas de acadêmicos em repúdio a essa violação à liberdade acadêmica.

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É comum vermos ministros do STF não cumprirem a regra que eles mesmos aprovaram sobre decisões monocráticas e de pedidos de vista — que, muitas vezes, são estratégicos. Essa prática pode ser considerada abusiva, ou é o esperado na dinâmica de uma corte?

Torna-se uma aberração quando a justificativa de sua origem - a urgência, no caso da liminar monocrática, e a necessidade de análise mais detida, no caso de pedido de vista - passa a ser manipulada. E é assim que se tornou a prática no STF: no caso de liminares monocráticas, mais do que urgência, é uma maneira de o relator driblar o plenário e sonegar a deliberação da corte; no caso do pedido de vista, uma forma dissimulada de obstruir a pauta e vetar o tema. Em ambos os casos, o ministro tem liberdade para escolher quando o plenário vai voltar a discutir o assunto. Limitar o poder de decisões monocráticas não é reduzir o poder do STF, mas o contrário, é fortalecer o poder do STF. Enfraquece, apenas, o poder do ministro individual. E há as melhores razões, teóricas, históricas e empíricas, para se fazer isso.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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