Carolina Brígido

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Reportagem

'Multinacionais não podem ficar impunes', diz defesa de vítimas de Mariana

Após nove anos do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), as multinacionais apontadas como responsáveis pela tragédia serão julgadas em Londres, na Inglaterra. O julgamento começa nesta segunda-feira (21) e tem duração prevista de 12 semanas.

O processo foi ajuizado pelo escritório de advocacia Pogust Goodhead, com sede na Inglaterra, em nome de 620 mil clientes. Os danos são estimados em R$ 230 bilhões. O UOL entrevistou a advogada Ana Carolina Salomão, sócia e Chief Investment Officer (CIO) do escritório.

É a primeira vez que as mineradoras vão se sentar no banco dos réus em um tribunal no exterior para discutir indenização relativa a uma tragédia ocorrida em 2015. Por que processar as empresas em Londres, e tanto tempo depois?

O caso está sendo julgado na Inglaterra porque é contra a BHP Group (UK) Limited, uma empresa constituída na Inglaterra, e a BHP Group Limited, uma empresa australiana do Grupo BHP que estava vinculada à empresa inglesa. O sistema jurídico britânico permite as chamadas "class actions", ou ações coletivas. No Brasil, existe a figura da Ação Civil Pública, que depende da atuação do Ministério Público. Na Inglaterra, as próprias vítimas podem processar a BHP.

Nossa ação foi aberta em 2018 na Inglaterra depois que milhares de pessoas deixaram de acreditar que a Fundação Renova seria capaz de fornecer uma reparação integral e justa. Desde então, as mineradoras, ao invés de negociarem com os meus clientes e colocarem um fim à espera dessas pessoas que já sofreram tanto, preferem continuar gastando centenas de milhões de dólares para procrastinar a resolução do caso. Com o julgamento, é chegada a hora de mostrar a essas grandes corporações multinacionais que elas não podem cometer crimes ambientais como o de Mariana e ficar impunes.

Como vocês avaliam a atuação da Justiça brasileira após nove anos da tragédia?

Não cabe ao nosso escritório avaliar a atuação da Justiça brasileira. Estamos totalmente focados no início do julgamento e confiantes de que a BHP será responsabilizada pelos eventos que levaram ao rompimento da barragem. Acreditamos firmemente no direito dos atingidos de procurar justiça em todas as instâncias possíveis e estamos cada vez mais perto de conseguir a reparação que eles merecem.

Estamos falando de uma tragédia que levou a várias mortes e à destruição de comunidades inteiras, e ninguém foi preso pela Justiça brasileira. Isso é comum nos outros casos envolvendo grandes companhias em que vocês já atuaram?

A Corte inglesa julgará a responsabilidade civil, não criminal, com a devida reparação às vítimas em caso de condenação da BHP. A questão penal é prerrogativa da Justiça brasileira.

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O sistema judicial inglês parece mais assertivo do que o brasileiro para esse tipo de causa?

Eu prefiro não comparar. O que posso afirmar é que o sistema judicial inglês tem uma longa experiência em lidar com ações coletivas internacionais, como a nossa, o que foi um fator importante para o julgamento do caso de Mariana ser aceito pela Corte britânica. E, embora o processo seja julgado na Corte inglesa, a base legal é o direito brasileiro, amparada na legislação ambiental e civil brasileira, que está entre as mais avançadas do mundo. Ao se utilizar a legislação ambiental brasileira na ação na Inglaterra, o Brasil reafirma sua posição como um dos polos mais importantes, se não o mais importante, na vanguarda do direito ambiental global.

Qual a expectativa para o julgamento? Quando deve terminar?

Em 5 de março de 2025. Se a BHP for responsabilizada pela tragédia, o que acreditamos que acontecerá, haverá uma nova fase, de quantificação dos danos para pagamento de indenização das vítimas, salvo se a companhia buscar um acordo.

Qual o valor mínimo para indenizações que vocês consideram justo?

A estimativa que temos é que os danos aos nossos 620 mil clientes são da ordem de R$ 230 bilhões (36 bilhões de libras). O valor final, porém, vai depender da sentença judicial ou de um acordo entre as partes. Nosso trabalho é garantir que o valor seja suficiente para promover uma reparação justa e completa, na proporção dos danos e do trauma causados a essas pessoas.

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Em meio ao julgamento em Londres, há discussões sobre repactuação das indenizações no Brasil. Como os processos e discussões no Brasil podem impactar o julgamento em Londres?

São dois processos diferentes. A repactuação é uma negociação conduzida no Brasil pelas instituições de Justiça com foco em reparações para os estados de Minas Gerais e Espírito Santo e o governo federal. Tudo está sendo tratado de forma confidencial, e nossos requerentes, os municípios e outras vítimas que representamos, não estão à mesa de negociação. O caso perante o tribunal inglês é um processo civil movido para responsabilizar a BHP e priorizar as vítimas, com a devida indenização pelos danos e perdas que sofreram. Mais de 620 mil brasileiros, incluindo indivíduos, povos indígenas, quilombolas, empresas, autarquias, igrejas e municípios que optaram por participar dessa ação e instruíram o nosso escritório para encontrar uma solução para suas reivindicações no tribunal. Um possível acordo de repactuação no Brasil não afeta o andamento do julgamento na Inglaterra.

Há acusações de advogados ligados a mineradoras e ao Ibram (associação de mineradoras) de que o escritório estaria fechando contratos de honorários de êxito com prefeituras, o que foi vedado pelo STF. O que vocês têm a dizer sobre isso?

Nós representamos 46 municípios nesta ação na Inglaterra. O pedido liminar do Ibram na ação, de que os municípios interrompam a comunicação com nosso escritório e de que o STF considere inconstitucional a atuação de municípios brasileiros em litígios no exterior, não foi atendido pelo relator. O atendimento parcial da liminar pelo ministro Flávio Dino na semana passada apenas determinou que municípios com ações judiciais no exterior apresentem os contratos firmados e que o pagamento de honorários só seja feito após a Justiça brasileira examinar previamente a legalidade dos atos. Tal medida em nada impacta o andamento do julgamento em Londres.

Além desta ação, o escritório tem buscado clientes para outros processos envolvendo as mineradoras no exterior. Quantos processos contra as mineradoras envolvidas na tragédia há em andamento em tribunais na Europa?

Atualmente, temos duas ações em andamento relacionadas ao desastre de Mariana. A primeira é na Inglaterra contra a BHP, cujo julgamento de responsabilidade começa hoje. A segunda é na Holanda, contra a Vale e a Samarco Iron Ore Europe BV, sua subsidiária no país. O processo holandês pede cerca de R$ 18 bilhões em indenizações para mais de 77 mil indivíduos, sete municípios brasileiros da Bahia, Espírito Santo e Minas Gerais, cerca de mil empresas e associações e 20 instituições religiosas.

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Vocês reuniram mais de 600 mil vítimas e dezenas de municípios. Sabem quantas dessas pessoas e cidades não receberam nenhuma indenização até hoje?

O processo abarca vários danos que não são cobertos pelo que as mineradoras oferecem —como danos morais e psicológicos. Há também comunidades tradicionais, como quilombolas e indígenas, que as empresas não reconhecem devidamente como afetadas. Ou ainda aqueles que acharam os valores tão baixos que se recusaram a receber. Seja como for, vale explicar que os clientes não receberão duas vezes (na repactuação e na ação inglesa) pelo mesmo dano, havendo um encontro de contas, se for o caso.

Como vocês garantem que todos os clientes que procuram o escritório são legitimamente afetados pela tragédia que ocorreu há oito anos?

As vítimas foram consultadas ao longo de quatro anos em um processo de quantificação que incluiu análises de evidências documentais, reuniões presenciais com os atingidos e o uso de questionários detalhados de autodeclaração de perdas.

Passado tanto tempo, há muitas pessoas atingidas que simplesmente não acreditam mais que irão receber uma indenização justa. O que tem a dizer para elas?

Infelizmente, a estratégia das empresas têm sido tentar esgotar as vítimas com recursos protelatórios e, com isso, empurrá-las para um acordo injusto. Mas nós fizemos vários encontros com atingidos essa semana. Estou hoje na região de Baixo Guandu e posso te dizer que sinto uma enorme confiança dos meus clientes de que, após nove anos desse evento terrível que matou 19 pessoas, devastou cidades, destruiu casas, negócios, impactou a vida de povos indígenas e quilombolas que viviam na região, vamos obter justiça e reparação. O mundo vai ouvir o grau de negligência e irresponsabilidade corporativa por parte das mineradoras, que culminou nesta tragédia.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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