Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Mentiroso, Jair Bolsonaro é o João Grilo às avessas
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"Não sei vocês, mas eu minto".
A frase bem-humorada foi repetida várias vezes pelo genial escritor Ariano Suassuna às plateias que ouviram suas deliciosas aulas-espetáculo. O criador do "Auto da Compadecida" sempre fazia, porém, uma importante ressalva: "Nunca menti para prejudicar ninguém".
Com seu elogio à cascata, Ariano, que morreu em 2014, quis desconstruir o falso ideal da perfeição humana. Poeticamente, admitia o uso da mentira para tornar mais leve a dura realidade dos pobres. Invenções ao estilo de seu famoso personagem João Grilo, sempre ingênuas, eram o último recurso para dar à vida paupérrima um toque de beleza, de brincadeira.
Quando levadas a sério, no entanto, as mentiras têm o efeito inverso. Pioram a realidade, fazem a barra ficar mais pesada.
Se invadem a vida pública, então, são um desastre. Resultam em fraude, em negligência, em crime.
Infelizmente, essa última situação é a descrição do Brasil de hoje.
A Presidência da República é ocupada por alguém que não tem o mínimo pudor de mentir. Não é algo ocasional, esporádico. Em todas as áreas, em vários os momentos, Jair Bolsonaro tem como base a mentira.
É emblemático o episódio em que o presidente, com a ajuda de um simpatizante, inventa dados do Tribunal de Contas da União (TCU) para defender que o número de mortes por covid-19 no Brasil é a metade do divulgado. Bolsonaro soltou o embuste na segunda-feira. Foi desmentido pelo TCU e, na terça-feira, admitiu a invenção e confessou ter ele próprio criado uma tabela maluca para sustentar que governadores estariam inflando número de óbitos para obter mais recursos.
Ontem mesmo descobriu-se o enredo escabroso que estava por trás dessa irresponsabilidade. Alexandre Figueiredo da Silva, amigo da família Bolsonaro e auditor do TCU, tentou incluir em um documento do tribunal, no domingo, um relatório feito por ele, lançando dúvidas sobre a contagem de mortes na pandemia. Foi refutado pelos colegas, que não aceitaram suas frágeis argumentações.
A parceria se completou no dia seguinte, quando o presidente usou a informação falsa de Silva para divulgar mais uma fábula.
O TCU passou a investigar o auditor, que também terá os sigilos telefônico e de comunicação quebrados pela CPI da Covid.
Apesar de todos esses desdobramentos no dia de ontem, Bolsonaro não recuou um milímetro. Na manhã de hoje, repetiu a mentira e manteve a acusação estapafúrdia aos chefes dos Executivos estaduais. "Tem gente querendo desqualificar o que eu estou falando para não incriminar governadores", delirou o presidente.
Por iniciativas como essa, pode-se dizer que Bolsonaro é o maior exemplo mundial da estratégia defendida por Steve Bannon, o guru de Donald Trump, que prega abertamente o uso de fake news como instrumento político. Talvez tenha superado as expectativas do próprio Bannon.
Impressiona tanto que um chefe de Estado possa ser tão mentiroso quanto que executivos, economistas, generais, líderes religiosos e outros personagens que o apoiam não se incomodem em fazer parte de um governo que tem essa marca.
Não menos surpreendente é que, diante dessa prática falaciosa, o presidente mantenha o apoio de algo em torno de 30% de brasileiros, como mostram as pesquisas. É gente que reproduzirá nas redes sociais a balela do presidente quanto ao número de mortes na pandemia, mesmo que já tenha sido desmentida.
Não caberia nesse espaço a lista de declarações feitas pelo ocupante do Palácio do Planalto que já foram reconhecidas como invencionices desde que começou o mandato. Não se trata, portanto, de um tropeço - é método.
Como o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB) definiu à coluna, Bolsonaro usa a mentira como instrumento para subverter as instituições.
Para Flávio Dino, inventar uma subnotificação de óbitos por covid-19 para municiar as redes sociais bolsonaristas e incentivar os brasileiros à quebra do isolamento social é comportamento homicida.
É lamentável que o Brasil tenha chegado a esse ponto, sob a complacência de personalidades e instituições que aceitaram uma aventura destrutiva para se livrar do PT ou contra um imaginário perigo comunista que nunca existiu.
Se é para conviver com mentiras, que voltemos às invenções de João Grilo, criador de fábulas e pequenos truques que tornavam mais feliz a vida de seu amigo Chicó.
Era um tempo em que, como dizia Ariano Suassuna, as mentiras não prejudicavam ninguém.
As de hoje podem matar muita gente.
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