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Chico Alves

REPORTAGEM

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Rol taxativo: Atleta com esclerose que fez Iron Man ficará sem remédio

Gildo Afonso, durante o tratamento da esclerose e na competição de atletismo - Divulgação
Gildo Afonso, durante o tratamento da esclerose e na competição de atletismo Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

23/06/2022 04h00

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Entre os quase 2 mil concorrentes que concluíram a prova de Iron Man realizada no fim do mês passado, em Florianópolis, um atleta em especial teve motivos para comemorar. A modalidade duríssima - que inclui corrida, natação e ciclismo - representa desafio para qualquer atleta, mas para Gildo Afonso teve uma gigantesca dificuldade a mais: ele é portador de esclerose múltipla, doença degenerativa que dificulta gravemente a coordenação motora.

Por isso, quando cruzou a linha de chegada, depois de 12 horas e 29 minutos de prova, Gildo estava tão exausto quanto emocionado. Após três anos de treinos duros, ele superou a doença para se tornar o primeiro brasileiro portador de esclerose a completar uma competição de Iron Man.

A partir dali, o paulista de 28 anos começou a imaginar quais seriam seus próximos desafios. Porém, os planos foram interrompidos por uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) tomada há duas semanas que fez com que suas expectativas desmoronassem.

Ao referendar a lista de tratamentos previstos na lista da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), o STJ permitiu que os planos de saúde cubram apenas as terapias citadas na relação da agência. O Kesimpta, remédio para esclerose que possibilitou a Gildo controlar os efeitos da doença, não está na lista, o chamado rol taxativo.

Ou seja: o rapaz será obrigado a parar o tratamento.

"A dose que eu tomo é mensal, então acredito que se eu ficar sem tomar o remédio, em um mês vou ficar vulnerável ao surto", disse Gildo à coluna.

Ele tem vivas na memória as sensações desagradáveis do último surto que teve, em agosto de 2021. "Eu fui perdendo os movimentos do lado esquerdo do corpo, não conseguia pegar um copo, não conseguia escrever", conta Gildo. "Aí eu tive dificuldade de andar e voltei para a cadeira de rodas por um longo período, era incerto se eu iria conseguir voltar a andar".

Depois de experimentar alguns medicamentos, o jovem chegou ao remédio que usa hoje. "Eu consegui o Kesimpta por via judicial, para que o plano de saúde fornecesse. A liminar garantiu a medicação", explica. "Mas aí surgiu essa decisão do STJ considerando a lista da ANS como rol taxativo e a medicação que eu uso não está na lista. A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) não reconheceu o tratamento, mesmo com vários pareceres médicos favoráveis. Agora, com o rol taxativo e sem essa aprovação da Conitec é quase impossível conseguir".

Gildo descobriu a doença aos 23 anos e recorreu ao atletismo para manter os músculos ativos. Mesmo com as dificuldades motoras, fazia triatlo até há alguns anos. Mas com o sucesso da nova medicação começou a embalar o sonho de ir além e completar uma prova de Iron Man.

Essa ideia nasceu depois que ele viu na Netflix o documentário chamado "Cem metros", sobre o espanhol Ramon, o primeiro portador de esclerose em todo o mundo a participar do Iron Man. "Eu me inspirei nessa história e como nenhum brasileiro com esclerose tinha feito a prova, eu pensei: será que é possível?", recorda.

Os médicos disseram que seria muito difícil alcançar esse objetivo, mas o tratamento se mostrou tão eficaz que Gildo passou a treinar mais forte e decidiu se preparar para a prova.

Foi assim que se tornou o primeiro brasileiro a completar uma edição do Iron Man.

Depois da competição em Florianópolis, enquanto a mente especulava sobre qual seria o próximo desafio a enfrentar, veio a notícia de que ficaria sem o medicamento.

"Ainda estava em êxtase pelo desempenho no Iron Man e aquela decisão roubou minha esperança", lamenta ele. "O que seria um futuro de esperança e conquista virou um futuro tenebroso".

Nem mesmo se entrar na Justiça para tentar conseguir o remédio ele acredita ter chance, já que basta ficar um mês sem o tratamento para que o estado de saúde regrida. Todos os medicamentos que estão no rol da ANS já foram usados por Gildo, sem sucesso. Cada dose do Kesimpta custa R$ 9 mil, o que o plano de saúde Unimed não vai mais cobrir.

O jovem espera que uma reviravolta venha do Supremo Tribunal Federal ou do Legislativo, que poderia criar uma lei que torna o rol da ANS meramente exemplificativo.

Gildo pensa em outras pessoas que estão na mesma situação. "Não sou um ponto da curva, minha luta é para que todos os portadores de esclerose tenham direito à mesma qualidade de vida que eu alcancei", defende.