Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Estamos sob um governo militar, e essa não é uma boa notícia
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[RESUMO] É hora de dar às coisas os nomes que elas têm: passada a ilusão de que o governo Bolsonaro seria um amálgama de Forças Armadas, liberais e militantes anticorrupção, é seguro dizer que estamos sob administração militar. Bastaram pouco mais de dois anos para enterrar a farsa da "capacidade técnica" dos quadros, cujo fracasso é evidente em diversas áreas e dramático na saúde. Fragilizado, o governo militar enfrenta desafios tanto na arena parlamentar quanto eleitoral para manter chances em 2022.
* Vitor Marchetti
A equação do atual governo militar brasileiro não é simples, e somada a baixa qualidade de seus quadros fica ainda pior. E digo governo militar, pois precisamos começar a dar os nomes para as coisas como elas são. Não possuímos um governo militar aos moldes de 1964, mas temos um governo militar sob um presidente eleito em circunstâncias e conjuntura que ainda precisam ser mais bem exploradas em nossas análises, apesar de as pistas serem cada vez mais evidentes, como a do recente livro do general Villas Bôas.
De qualquer modo, feita a observação inicial, vamos aos seus desafios. Para fidelizar eleitores rumo a 2022, Bolsonaro precisa agir em duas frentes:
1) produzir políticas de distribuição de renda para uma enorme parcela da população cada vez mais empobrecida e sem perspectiva de emprego e renda. É o eleitor por pragmatismo. Adere ao governo que impacta positivamente em sua realidade mais imediata.
2) manter a agitação de uma base mais dispersa nas classes sociais, mas que se mobiliza por causas conservadoras. Esse é o eleitor por convicção. Suas demandas por entregas concretas pode estar focada em políticas concretas, como os decretos das armas, ou apenas na construção de discursos, como é o caso da agenda antiglobalista que nos legou um dos piores desempenhos entre governos na pandemia.
Para tanto, o governo precisa agir em duas arenas. Na arena parlamentar:
1) a agenda de distribuição de renda atende os interesses do Centrão, que precisa dessas políticas para capitalizar nas eleições de 22. Mas não é só de auxílio emergencial que sobrevive o Centrão. Demandará também uma agenda mais participativa e proativa do Estado.
2) contudo, apesar de boa parte desta base ser adepta à agenda dos costumes, seus atores são pragmáticos, e o seu limite é a instabilidade que essa agenda pode produzir nas relações entre os poderes e na sociedade. Sabem que ganham mais politicamente implementando uma agenda do que viralizando no Twitter.
Já na arena eleitoral:
1) para manter a capacidade de produzir políticas que atendam o Centrão, Bolsonaro terá de impor fortes limites à agenda liberal. Exemplos disso são o recuo da reestruturação do Banco do Brasil (o fechamento de agências não agradava os deputados do Centrão) e a intervenção na Petrobras para controlar os preços dos combustíveis.
2) será preciso estabelecer um limite difícil entre manter essa base ativa e conseguir moderá-la quando for necessário. Se errar a mão em favor da agitação, o governo poderá se isolar de atores políticos e econômicos importantes; já errar a mão para a moderação tende a produzir uma sensação de abandono do governo. Como alguns já veem a demissão de Weintraub, o isolamento de Sara Winter e a prisão de Daniel Silveira.
O governo militar já perdeu as classes médias urbanas ao enterrar a agenda lavajatista e pelo desastre na condução da pandemia, que tem na demora da vacinação apenas uma de suas facetas. Perderá a base popular se não aprovar uma renda emergencial e colocar o Estado como mediador das demandas econômicas e sociais. Como diz o novo ditado: "quem lacra não lucra". Nesse caso, quem fala muito, mas não entrega política concreta, não fatura politicamente.
Bolsonaro perderá o topo da pirâmide se não avançar na agenda liberal. Os superministros já foram para o espaço. Ou melhor, já ficaram do tamanho do ministro que veio do espaço. A depender dos movimentos dos próximos meses, não haverá mais um Paulo Guedes no governo para justificar a adesão dos setores econômicos a uma administração tão desastrada.
A equação não é simples. E é ainda pior pela baixa capacidade de recrutamento de gestores por parte do governo. E isso ocorre por duas razões. Primeiro, porque as suas marcas negativas já estão tão evidentes que o potencial recrutado coloca na balança de custos e benefícios o risco de perder sua credibilidade como capital político. É preciso topar participar daquele tipo de reunião ministerial, para começar. Segundo, e me parece o mais importante, é que um governo militar é ainda mais corporativista e fechado do que qualquer outro perfil social que ocupasse a presidência da República. Não fosse assim, teríamos passado os últimos anos governados apenas por sociólogos e metalúrgicos sindicalizados.
Ocorre, porém, que em um governo militar estamos fadados a sermos governados apenas por militares. E se isso fosse dito há dez anos talvez houvesse alguém a ver algo de positivo na capacidade técnica desses quadros. Mas hoje, infelizmente, está desnudada a farsa. Os mestres em logística mostraram que não conseguem conceber sequer um planejamento de gestão de seringas, quanto mais de vacinas.
Em resumo, o apoio ao governo militar depende da equalização de variáveis contraditórias entre si. Isso torna a tarefa impossível? Claro que não, mas exigirá enorme capacidade de gestão. Seja para manter a base política na arena parlamentar, seja para manter apoio na arena eleitoral. Ocorre que essa capacidade de gestão e recrutamento de bons quadros está, digamos, deixando apenas os militares felizes demais.
* Vitor Marchetti é cientista político e professor do Bacharelado e da Pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC)
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