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Há espaço para um paradigma feminista na política externa brasileira?

Palácio Itamaraty - Ueslei Marcelino
Palácio Itamaraty Imagem: Ueslei Marcelino

Colunista do UOL

13/07/2021 04h00

Por Bruna Soares de Aguiar *

Nos últimos anos, alguns países têm assumido políticas internacionais nomeadamente feministas e/ou com lentes de gênero.

Na vanguarda deste movimento, podemos citar a Suécia que declarou que a partir de 2014 passaria a implementar políticas feministas, principalmente nas pastas de cooperação internacional para o desenvolvimento e de segurança.

Por este mesmo caminho, seguiram Noruega, Canadá e França. Em 2020, o México tornou-se o primeiro país da região latino-americana e do sul global a declarar que passará a atuar pelo paradigma feminista em sua política exterior.

Cada estado citado possui sua tradição específica no tratamento da questão de gênero em âmbito interno e foi trilhando caminhos próprios para gestão da agenda específica aos direitos de mulheres e da comunidade LGBTQIA+.

Por isso, não há uma fórmula exata para delimitar o que faz com que um governo assuma este paradigma em seus discursos e práticas. O que se pode afirmar é que a conjuntura atual do sistema internacional, em alguma medida, contribui para que essa temática ascenda aos espaços multilaterais e aos governos.

Importantes analistas feministas das relações internacionais assinalam que o campo foi elaborado a partir de uma lógica em que o universal é masculino. As mulheres e a população LGBTQIA+ estiveram à margem de grandes tomadas de decisões e posições de poder ao longo do tempo.

Contudo, é relevante sublinhar que, em diferentes níveis, os movimentos feministas e coletivos de mulheres dos países do norte tiveram acesso a alguns espaços, principalmente na Liga das Nações e, posteriormente, nas Nações Unidas. Entretanto, por se tratar de um viés liberal dos feminismos, as instituições multilaterais ainda lidam com a temática pela via dos remédios legais, alocando as mulheres em esferas relacionadas ao trabalho do cuidado e/ou em pastas com ideal social expresso na feminilidade.

Os sistemas internacionais e domésticos dos estados são consolidados por um regime de gênero, que Jean Steans e Daniela Tepe-Belfrage explicam ser a organização formal e informal das relações de gênero na economia, nos Estados e nas instituições.

Esta realidade nos impõe diferenças de gênero que são historicamente construídas e delimitam a condição masculina e heterossexual e, acrescentamos aqui, branca, como padrão para as normas e políticas sociais. Isso afeta diretamente estados que, apesar de —em alguns casos— reconhecerem os direitos das mulheres como direitos humanos fundamentais, ainda não avançaram no sentido de ter representatividade feminina em postos de poder, como o próprio cargo de ministra ou secretária de Relações Exteriores. Isto favorece a manutenção da diplomacia e do sistema internacional como um universo masculino, heterossexual e branco.

Tendo em vista este panorama, pensar o Brasil nos parece essencial. O Brasil é o único país da América do Sul que nunca teve uma mulher à frente da pasta das Relações Exteriores e apenas em 2010 elegeu sua primeira e única mulher presidenta da República. Ademais, o país figura nas primeiras posições de vários rankings internacionais como um dos mais inseguros para ser mulher e/ou LGBTQIA+. Esta realidade não é recente, mas sim resultado de processos políticos e sociais que consolidaram a visão tradicional na qual os homens ocupam postos de poder e os corpos que não são identificados como compatíveis com a masculinidade heterossexual branca são castigados.

É importante, entretanto, sublinhar que o país, especialmente entre a segunda metade da década de 1990 e os anos 2010, avançou em sua política externa para atuar nos fóruns e nos principais debates sobre direitos humanos, das mulheres e da comunidade LGBTQIA+, ainda que domesticamente tenha tido que gerir o lobby político de uma forte bancada parlamentar conservadora.

Outro fator que contribuiu para a atuação mais progressista do Brasil foi o processo de horizontalização da política externa. Nos anos do governo Lula (2003-2010), a política internacional ampliou presença no debate doméstico. Novas organizações passaram a cooperar na proposição de pautas e aumentaram a participação em espaços multilaterais. Houve abertura de oportunidades e ampliação de atores que favoreceram a articulação de setores mais progressistas da sociedade brasileira, mas não apenas destes.

No plano interno, bancadas religiosas marcam presença forte no Congresso, por vezes limitando o debate de pautas relativas aos direitos sexuais reprodutivos das mulheres. Na atuação externa, organizações religiosas e políticos alinhados ao fundamentalismo religioso gradualmente passaram a ter mais ingerência sobre pautas relativas à agenda de gênero.

Com o resultado das eleições de 2018 para o Executivo e o Legislativo, se anteviam pressões mais contundentes para defesa de linhas conservadoras. A ingerência de preceitos religiosos fez com que órgãos de governo representassem conceitos de "homem e mulher" a partir da compreensão biológica, retirando termos como gênero de documentos oficiais do Itamaraty e do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, além de afastar o país de debates fundamentais para assegurar os direitos das mulheres e LGBTQIA+.

A chancelaria ficou marcada por ideologização extrema ao defender certa moral religiosa em desfavor da garantia de direitos, alinhando o Brasil a um punhado de países extremistas, como a Arábia Saudita. É importante assinalar, entretanto, que mesmo nos anos mais progressistas da pauta de gênero no país, havia ainda muito onde se avançar.

As possibilidades para pensar uma política externa brasileira com viés de gênero ou até mesmo feminista não se limitam a ter uma mulher à frente do Itamaraty e em alguns dos principais postos diplomáticos. É necessário que a ocupação destes espaços venha acompanhada de compromissos com agendas públicas e transformadoras que levem em conta também dimensões econômicas, raciais e outras tantas nas quais se manifestam desigualdades e opressões que marcam a sociedade mundial.

É preciso coordenação e ativismo da sociedade civil e de coletivos ligados aos direitos de gênero. Inicia-se com movimentação para que o país, pelo menos, pare de regredir no debate internacional e passe a se articular com estados que defendam e apoiem os direitos básicos para as mulheres e população LGBTQIA+. Espera-se a defesa do que está expresso na Declaração Universal dos Direitos Humanos e em outros documentos fundamentais. A partir da demarcação mínima do campo de jogo, em parceria com atores da sociedade e das instituições, será possível discutir um paradigma feminista para a política externa brasileira.

Como bem apontou Simone de Beauvoir, ainda no século 20, "nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que se manter vigilante durante toda a sua vida."

Hoje o Brasil segue caminho conturbado. Se antes, no debate doméstico, figurava a necessidade de cumprir compromissos internacionais, agora temos que dar um passo atrás e defender que o país, antes de mais nada, retorne à política global com disponibilidade para diálogo e participação relevantes.

* Bruna Soares de Aguiar é cientista política e doutoranda em ciência política pelo Iesp/Uerj