Topo

Diogo Schelp

Cloroquina: sociedade de infectologia rebate procurador negacionista

A Sociedade Brasileira de Infectologia refuta a existência de "tratamento precoce" contra covid-19 - Imagem: Remko de Waal/ANP/AFP (Getty Images)
A Sociedade Brasileira de Infectologia refuta a existência de "tratamento precoce" contra covid-19 Imagem: Imagem: Remko de Waal/ANP/AFP (Getty Images)

Colunista do UOL

18/12/2020 12h36

A Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) reafirmou, em resposta a um inquérito civil do Ministério Público Federal em Goiás do último dia 9, que não há indicação científica de "tratamento precoce" contra covid-19 e que a hidroxicloroquina não funciona contra a doença.

Os questionamentos do MPF em Goiás foram feitos depois que a SBI divulgou, no dia 7 deste mês, um resumo com recomendações médicas sobre a covid-19, incluindo atualizações sobre o que a ciência já sabe sobre diagnóstico, tratamento e vacinas.

Entre outros pontos, a SBI afirmava não recomendar o "tratamento farmacológico precoce para covid-19 com qualquer medicamento (cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina, nitazoxanida, corticoide, zinco, vitaminas, anticoagulante, ozônio por via retal, dióxido de cloro), porque os estudos clínicos randomizados com grupo controle existentes até o momento não mostraram benefício e, além disso, alguns destes medicamentos podem causar efeitos colaterais".

Segundo a SBI, "não existe comprovação científica de que esses medicamentos sejam eficazes contra a covid-19".

No novo documento, enviado na segunda-feira (14) ao MPF e contendo 43 páginas, a Sociedade Brasileira de Infectologia reafirma que ainda não existe prova científica de fármacos que permitam fazer um "tratamento precoce" da covid-19.

"A SBI é completamente a favor do 'tratamento precoce' para a covid-19, assim que qualquer fármaco demonstrar segurança e eficácia do seu uso nos primeiros dias de sintomas, o que, infelizmente, até a presente data não ocorreu", afirma a resposta da SBI ao Ministério Público.

E continua: "Por outro lado, a SBI foi a primeira sociedade científica brasileira a anunciar a eficácia, com impacto em diminuir a mortalidade, do uso da dexametasona (corticóide) em pacientes com pneumonia e hipóxia causada pela covid-19, que geralmente ocorre entre o 5º e 9º dia de sintomas."

O documento também faz uma revisão dos estudos científicos existentes até o momento que contraindicam a hidroxicloroquina ou a cloroquina no tratamento de covid-19 e fornece o link para a íntegra de vários deles.

"Quatro estudos clínicos randomizados demonstraram que o tratamento com HCQ (hidroxicloroquina) pode aumentar o risco de eventos adversos", observa a SBI no texto, e alerta que o antibiótico "azitromicina, sozinha ou em combinação com HCQ, também pode estar associada a significativo risco" cardíaco.

O documento também faz recomendação contra o uso do vermífugo ivermectina para o tratamento de covid-19.

O chamado "tratamento precoce" ou "preventivo" vem sendo indicado e propagandeado pelo Ministério da Saúde e pelo presidente Jair Bolsonaro em detrimento das medidas de distanciamento social.

O ofício do MP intimando a sociedade de infectologia a provar as bases científicas das recomendações do dia 9 foi assinado pelo procurador da República Ailton Benedito de Souza.

No texto, Souza requisita que o SBI forneça cópias dos estudos provando a não recomendação de tratamento de covid-19 com os fármacos mencionados acima, das pesquisas que sustentam o uso de analgésicos em pacientes com a doença e da ausência de conflito de interesse do presidente e dos diretores da SBI em relação à indústria de insumos médicos.

Ao requisitar a comprovação de que certos tratamentos não funcionam, o procurador ignora o princípio científico do ônus da prova, segundo o qual é a eficácia de um medicamento que deve ser provada e não a ausência de eficácia.

A intimação foi compreendida por parte da comunidade médica como uma tentativa de constranger os cientistas brasileiros a fazer recomendações que contrariem as orientações do governo federal.

A Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), por exemplo, emitiu nota se solidarizando com a SBI e repudiando a intimação do procurador Souza. A SBI declarou não existir qualquer conflito de interesses em relação a empresas do setor médico na atuação de seus membros.

O procurador Ailton Benedito de Souza costuma usar o Twitter, onde tem mais de 220.000 seguidores, para propagar visões negacionistas da ciência no que se refere à pandemia do novo coronavírus.

O inquérito civil aberto pelo procurador Souza transparece suas posições pessoais e políticas em temas relacionados à covid-19.

Em suas postagens na rede social, Souza coloca em dúvida a segurança e a eficácia das vacinas, refuta as medidas de isolamento social, critica os laboratórios farmacêuticos, exalta a hidroxicloroquina contra a covid-19 e chama os cientistas que contestam a existência de "tratamento precoce" de "tiranetes".

Em outubro do ano passado, as credenciais conservadoras levaram Souza a ser nomeado para a chefia da Secretaria de Direitos Humanos e Defesa Coletiva da Procuradoria-Geral da República (PGR). O procurador-geral, Augusto Aras, extinguiu a secretaria em abril deste ano.

A coluna tentou contato por telefone com a assessoria de comunicação da Procuradoria da República em Goiás, sem sucesso, e enviou por email solicitação sobre o posicionamento do procurador sobre as explicações da Sociedade Brasileira de Infectologia aos seus questionamentos. Esse posicionamento será incluído neste artigo tão logo houver uma resposta.