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Diogo Schelp

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Em live, Bolsonarou subverte ônus da prova como fez com hidroxicloroquina

O presidente Jair Bolsonaro em sua live de quinta-feira (29) - Reprodução
O presidente Jair Bolsonaro em sua live de quinta-feira (29) Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

30/07/2021 15h59

Não deveria surpreender ninguém o fato de Jair Bolsonaro não ter provas de que as eleições no Brasil foram, são ou podem ser fraudadas. Se as tivesse, poderia tê-las apresentado antes, muito antes. Há mais de um ano, pelo menos, quando afirmou, durante viagem aos Estados Unidos, que podia "provar" que teria vencido as eleições no primeiro turno, em 2018. Tudo mentira, claro.

O que o presidente fez em sua live desta quinta-feira (29) foi repetir a estratégia que tem adotado desde o ano passado com a hidroxicloroquina e outros medicamentos sem eficácia contra covid-19: ele levanta uma hipótese sem comprovação que pode lhe servir politicamente e deixa para os outros o duro papel de mostrar que está errado e de consertar o estrago.

Ou seja, Bolsonaro inverte o ônus da prova, um princípio basilar da ciência e do direito que define a quem cabe comprovar uma hipótese ou afirmação.

Na ciência, parte-se primeiro da inexistência de um fato (por exemplo, a inexistência de eficácia da hidroxicloroquina contra a covid-19 ou a inexistência de vulnerabilidade à fraude eleitoral de um método de votação). A existência de um fato só é construída com evidências colhidas por meio do método científico. Enquanto esse fato não puder ser comprovado, deve-se assumir sua inexistência como verdade.

Digamos que uma pessoa levante a hipótese de que discos voadores existem. Ela precisará provar sua hipótese por meio de observação para coletar evidências empíricas. Enquanto não as encontrar, a conclusão deverá ser sempre a de inexistência de discos voadores.

O ônus da prova é de quem levanta a hipótese de existência de OVNIs. Inverter o ônus da prova seria exigir de outros pesquisadores a comprovação de que discos voadores não existem, o que obviamente é impossível, pois os defensores da hipótese de que eles existem poderão sempre alegar que não foram esgotadas todas as possibilidades de observação.

É exatamente esse tipo de inversão do ônus da prova que Bolsonaro faz com remédios sem eficácia comprovada contra covid-19. Ele afirma que é "possível" que os medicamentos salvem vidas, ainda que sem comprovação. Quem quiser que prove o contrário.

A cada novo estudo que não encontra qualquer evidência de que a hidroxicloroquina é eficaz no combate à covid-19, os defensores da droga afirmam que a dosagem deveria ser outra ou que são necessárias novas pesquisas, com novos métodos de observação, para se chegar a uma conclusão definitiva — quando deveria ser deles o ônus de provar a existência de eficácia do medicamento.

No direito, o ônus da prova é de quem faz uma acusação. Cabe a quem acusa apresentar as evidências de suas afirmações.

Em sua live, Bolsonaro apenas apresentou o que chama de "indícios" de supostas fragilidades no sistema de votação eletrônico, mas que não passam de um apanhado de informações falsas difundidas na internet nos últimos anos e que já foram desmentidas diversas vezes.

Como não tem como provar as acusações que faz contra o sistema de votação, Bolsonaro trata de subverter o ônus da prova mais uma vez, jogando para o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e outros atores do processo eleitoral a responsabilidade de mostrar a inexistência de fraude — quando deveria caber a ele, o acusador, a tarefa de provar o que diz.

"Será que esse modo de se fazer eleições é seguro, é blindado? [Aos] que me acusam de não apresentar provas, eu devolvo a acusação. Me apresente provas [de que] não é fraudável", disse o presidente.

A argumentação de Bolsonaro é tão tola, tão falaciosa, que não deveria ser nem levada a sério. Infelizmente, muitos brasileiros acreditam nela.