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Fernanda Magnotta

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Rainha retratava continuidade em um mundo de rupturas cada vez mais bruscas

Rainha Elizabeth - Getty Images
Rainha Elizabeth Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

09/09/2022 04h00

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Seria imprudente afirmar que o mundo que vivemos hoje é necessariamente mais caótico do que aquele que Elizabeth II conheceu durante a maior parte de sua vida. Ao longo de seus 70 anos de reinado e quase 100 de existência, ela foi protagonista de tempos profundamente conturbados. Experimentou o auge da "era dos extremos", como referiu-se Eric Hobsbawm ao século XX, um período de profundas transformações sistêmicas, marcado por guerras, crises e enorme polarização.

Sua morte, que ocorre pouco menos de uma semana depois de outra figura igualmente simbólica do século passado, o último líder soviético Mikhail Gorbachev, levanta duas importantes questões: primeiro, sobre a capacidade dos sucessores em manter o sistema britânico sob controle, e segundo, sobre em que medida morrem, com essas figuras, também a forma de fazer política de outra época.

Em relação ao primeiro ponto, parece exagero supor que a morte da Rainha condene a monarquia britânica ao seu fim. As bases de sustentação desse modelo estão profundamente enraizadas naquela sociedade e em suas estruturas de poder. Constituem papel importante na formação identitária desse povo e funcionam como elemento de coesão social central. Basta ler Weber para entender que esse tipo de fenômeno transcende figuras individuais ou personalismos de qualquer tipo. Também é relevante lembrar que o sistema de governo da Grã Bretanha já era, por si só, pouco dependente do palácio de Buckingham per se, cuja função é, na maior parte do tempo, muito mais simbólica do que efetivamente prática.

Apesar disso tudo, é inegável que a experiência da Rainha em estancar crises e promover diálogo fará falta. O Reino Unido vive, como boa parte do restante do mundo, um momento de significativas incertezas. A vida pós-BREXIT, o revés econômico e as sucessivas trocas de premiês ao longo dos últimos anos são apenas alguns dos desafios que Charles, agora Rei, terá que ajudar o Parlamento a acomodar. O diálogo transatlântico com os Estados Unidos, que também já enfrentou barreiras com o aumento do protecionismo global, o trato sensível com a Europa continental - ainda um dos principais parceiros comerciais -, os reflexos da guerra da Ucrânia e a inesperada aliança sino-russa agregam complexidade a esse cenário. Isso, claro, sem falar no futuro da Commonwealth, cuja solidez repousa, para diversos analistas, em grande medida, na figura de Elizabeth.

Em relação ao segundo ponto, a partida da Rainha parece demarcar, de forma alegórica, o encerramento de um ciclo de estabilidade e de lideranças longevas nas democracias ocidentais. O alvorecer do século XXI agregou complicações aos desafios anteriormente já conhecidos. O aumento da desigualdade e das assimetrias econômicas, impulsionado por uma onda de ressentimento e a disseminação de desinformação e de narrativas ideacionais pouca substantivas, mas de grande apelo, fizeram do mundo globalizado um terreno fértil para oportunistas. Deram espaço para que um novo tipo de populismo emergisse e, por meio das novas tecnologias de comunicação, ganhassem voz. É um outro capítulo, sem dúvida, no que tange à radicalização de discursos e ações.

As instituições convencionais e as estruturas usualmente empenhadas em manter os freios e contrapesos parecem cada vez mais expostas e vivem um desgaste impossível de ignorar. A descrença na política é um fenômeno global; a dificuldade de renovação dos quadros também, assim como o sequestro do Estado por grupos interessados apenas em manter seus próprios privilégios e projetos de poder.

É claro que isso não implica dizer que os líderes de outrora fossem mais altruístas ou melhor preparados. O próprio legado de Elizabeth II é ambíguo, repleto de escândalos e de polêmicas. O ponto aqui é: parece improvável acreditar que, mesmo no sistema monárquico britânico, seja possível, hoje, pensar em uma liderança que possa subsistir 70 anos no poder. Trata-se de uma realidade que contrasta com o imediatismo do século XXI, com a impaciência de sociedades que buscam saídas rápidas e fáceis para seus problemas e que tratam os próprios líderes como descartáveis.