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Jamil Chade

A voz de 10 milhões de invisíveis

Colunista do UOL

30/10/2019 04h00

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Maha Mamo jamais pensou que seria brasileira. Isso não estava nos planos da garota que nasceu no Líbano. Mas, hoje, é com um passaporte brasileiro que ela percorre ao mundo dando voz a cerca de 10 milhões de pessoas invisíveis, apátridas espalhados pelo mundo, sem passaporte, sem documentos e sem direitos. Em suas viagens, ela leva consigo um recado tão brasileiro quanto universal: "sonhem!".

Há um ano, pela primeira vez, o Brasil concedeu a nacionalidade brasileira a duas apátridas. Uma delas era Maha, além de sua irmã Souad. A naturalização foi entregue na sede da ONU em Genebra pelo então coordenador-geral do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), Bernardo Laferté, cujo avô era apátrida e foi acolhido no país.

A iniciativa foi resultado da nova Lei da Migração, que entrou vigor em 2017 e que garantindo um processo de naturalização simplificada. Não por acaso, o governo fez questão de qualificar como "histórico" o gesto ocorrido na ONU.

Hoje, um ano depois, muitos dos seus sonhos começam a se tornar realidade, como visitar a Disney. Ela passou a poder viajar e ter todos seus documentos. Com eles, vieram também seus direitos.

Mas a história da luta da mulher nascida no Líbano não tinha terminado. Com uma campanha para ajudar as 10 milhões de pessoas em todo o mundo que não possuem nacionalidade, o Alto Comissariado da ONU para Refugiados passou a usar Maha como uma espécie de porta-voz desse exército de invisíveis.

Neste mês, por exemplo, ela dividiu o palco da ONU com a atriz Cate Blanchett, embaixadora das Nações Unidas para o tema dos apátridas.

Em conversa exclusiva com o UOL, Maha conta que não escolheu essa missão e que não foi nem mesmo a ONU quem a convocou. "Foram os apátridas que passaram a me ver como uma esperança", disse.

Com 31 anos, a "nova brasileira" admite que teve dias de dúvidas e angústia, depois de ter conseguido o passaporte. "Eu tinha chegado ao objetivo de minha vida. E, então, me perguntava: e agora? O que vai mudar? para que eu vou acordar amanhã?", contou.

Mas rapidamente ela percebeu que sua luta não era apenas por um único passaporte, para si mesma. "Passei a receber mensagens de muitas pessoas apátridas em todo o mundo, me perguntando o que fazer. Também foi contactado por governos, parlamentares, que queriam saber os detalhes do processo para também implementar leis similares", explicou. "E me dei conta que minha missão agora é muito maior que conseguir meu passaporte", disse.

Maha, de uma certa forma, se transformou no símbolo da esperança de que tudo pode acontecer.

Mas também passou a levar consigo um sentimento de que a diversidade e a liberdade no Brasil precisam ser protegidas. "Jamais pensei que seria uma brasileira. Conhecia só os jogadores de futebol e nada mais. Hoje, tenho uma enorme honra de ser brasileira", disse.

"Sim, eu nasci no Líbano e me sinto libanesa. Mas eu encontrei com minha alma no Brasil. O Brasil é muito mágico", insistiu.

Mas ela insiste sobre a necessidade de se preservar e proteger a
diversidade no Brasil, assim como suas liberdades. "A liberdade que existe no Brasil é um privilégio hoje no mundo. Tudo é possível no Brasil. É o povo que tem o poder de tudo", constatou.

Para ela, essa liberdade vai desde o fato de uma pessoa sequer pensar se ela pode ou não ir de chinelo para uma padaria até o fato de ir às urnas. "Isso não existe em muitos lugares do mundo e precisamos valorizar essa liberdade", disse.

Hoje, ela diz que tem "um passaporte para a liberdade". "Agora, eu tenho um país que me protege. Posso ir dormir não mais sonhando em ter direitos. Mas em buscar minha vida", disse.

Sombra

Sua situação a deixava numa condição de vulnerabilidade extrema. O casamento de seus pais jamais foi aceito na Síria, por conta da diferença religiosa entre o pai e a mãe. Eles fugiram então para o Líbano, onde tiveram três filhos. Mas, pelas leis libaneses, o pai das crianças precisava ser local para que elas recebessem a nacionalidade. Resultado: as crianças não poderiam ser nem sírias e nem libanesas. Sem nacionalidade, as crianças tampouco tinham documentos.

Os primeiros problemas começaram na escola, que aceitou ela e seus irmãos por um favor. Mas os problemas estavam só começando. Não tinha acesso aos hospitais e invejava até o cachorro das amigas que tinham documento de vacinação.

Ela ainda desistiu de seu esporte favorito: o basquete. Sem documentos, ela podia treinar. Mas jamais jogar num torneio.

Em sua vida, tudo era mais complicado: cartão de crédito, carteira de motorista e até celulares estavam em nome de outras pessoas ou simplesmente não existiam. Para sair pela noite, a garota tampouco podia ir a discotecas, que a exigiam documento.

Durante dez anos, ela mandou cartas a dezenas de países para pedir apenas para ser considerada como apátrida. E finalmente foi na embaixada do Brasil em 2014 que encontrou as portas abertas.

Naquele ano, ela, sua irmã e seu irmão embarcaram para o Brasil na condição de refugiada. A luta seguinte foi a de conseguir uma lei que conseguisse facilitar o processo para os apátridas.

Mas Maha também já viveu a realidade brasileira. Seu irmão foi assassinato em 2016 em uma tentativa de assalto em Belo Horizonte, provavelmente por não conseguir entender o que os ladrões pediam.

Sua tristeza com a morte do irmão apenas foi superada depois de ela entender que ela tinha uma missão. "Um mês depois de sua morte, recebemos um atestado de óbito. Ele nunca teve uma certidão de nascimento. Mas, por estar no Brasil, ganhou o privilégio de um atestado quando morreu", declarou.

Agora, ela comemora. "Eu sou finalmente um ser humano. No Brasil, pela primeira vez, andei como uma pessoa, e não como uma sombra", completou Maha.