Coronavírus expõe face obscura da Suíça, com filas por doação de comida
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Ainda era madrugada quando as primeiras pessoas começaram a formar uma fila, entre sexta-feira e sábado. Horas depois, comida seria distribuída para famílias carentes.
Não se tratava da periferia de uma cidade brasileira, africana ou asiática. A fila era em Genebra, a segunda cidade mais cara do mundo e no coração de um dos países com maior PIB per capita.
A pandemia desnudou a pobreza escondida nas sombras de bancos sofisticados, hotéis de luxo e de uma sociedade que julgava que a miséria estava distante. Todos os sábados, entidades ligadas à Igreja e ONGs se unem para distribuir alimentos e itens básicos para milhares de pessoas que, diante da crise, perderam sua única renda.
Em pouco tempo, a fila que iniciava na pista de hóquei sobre o gelo do time local já deixava o bairro, cruzava pontes pelos tranquilos rios da cidade e expunham à população uma realidade dramática.
Mais de um quilômetro de uma fila da vergonha para uma sociedade que se dedica a buscar alimentos "fair trade" nas prateleiras dos supermercados, na esperança de que alguns centavos extras cheguem aos pequenos agricultores da África ou América do Sul.
Uma cidade acostumada ao desfile de carros como Lamborghini, Ferrari e uma infinidade de marcas de luxo. Um lugar habituado às vitrines de relógios transformados em joias. Uma cidade repleta de bancos-boutiques, que exigem que seus clientes tenham uma fortuna de pelo menos US$ 1 milhão para sequer entrar nos escritórios. Uma cidade em que hotéis concorrem para sediar leilões de diamantes milionários para compradores que jamais são identificados. Uma cidade que, com seus gerentes de contas, serviu de cofre-forte para a fortuna desviada por ex-diretores da Petrobras, Eduardo Cunha e tantos outros.
Fome entre cofres com barras de ouro
Mas, naquela fila, praticamente todos eram estrangeiros. Os outros estrangeiros. Não aqueles com contas em nome de fundações ou trusts.
Quem a percorria ouvia português, árabe, espanhol, filipino e tantas outras línguas. Pessoas olhando para o chão de uma cidade que abriga algumas das maiores fortunas do mundo e que sequer tem cofres suficientes para todos os outros estrangeiros que esperam guardar seus diamantes e barras de ouro.
O mesmo fenômeno em Genebra passou a ser observado em Lausanne e outras cidades da rica Suíça. Com 8,6 milhões de habitantes, o país conta um desemprego de apenas 3,5% antes da pandemia. Em seus bancos está um terço da fortuna privada do planeta: US$ 3,3 trilhões.
Mas o que esses números não revelavam era a condição de vulnerabilidade de milhares de pessoas, muitos trabalhando de forma irregular. Nas filas da comida, estavam famílias que ocupam as cozinhas de restaurantes de luxo, que limpam banheiros de mansões e centenas de outros que dependem de uma renda diária.
"Com os restaurantes fechados, não tenho mais trabalho", disse Maria Estela, uma equatoriana que pediu para não ter seu sobrenome revelado.
Brasil foi representado na fila
Brasileiros também faziam parte da fila. Questionados se tinham ido buscar outra ajuda, um grupo admitiu que estava evitando as autoridades, temendo que fossem deportados. Nenhum deles queria ter a identidade revelada pela reportagem.
Para a entidade Caritas, 600 mil pessoas no país ganham menos que um valor mínimo para garantir uma vida digna. Na Suíça, diante dos valores extremamente elevados de aluguel e de alimentos, considera-se pobre a família que vive com uma renda mensal abaixo de cerca US$ 2 mil.
Diante da pandemia, a vulnerabilidade de um setor da sociedade foi exposta. No último sábado, na pacata Genebra, mais de 1.500 pessoas saíram em busca de ajuda. E prometeram voltar no próximo fim de semana.
A renda per capita da Suíça é de US$ 84 mil por ano, dez vezes o valor do Brasil. Mas isso não impediu que a pobreza mostrasse sua cara. O coronavírus, como em outras partes do mundo, também encostou no muro a sociedade dos países ricos com uma só pergunta: até quando o mundo sustentará a insuportável hipocrisia?
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