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Jamil Chade

Plano para imunizar o mundo se transforma em intensa disputa política

Cemitério Parque Tarumã, em Manaus - Bruno Kelly
Cemitério Parque Tarumã, em Manaus Imagem: Bruno Kelly

Colunista do UOL

09/07/2020 04h00

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Na Organização Mundial da Saúde, a avaliação feita longe dos holofotes é de que a atual pandemia só será freada agora com uma vacina. No melhor dos cenários, os produtos chegarão ao mercado em meados de 2021. Mas, nos bastidores, governos já vivem uma inédita batalha diplomática em relação ao produto, abrindo negociações, corrida aos produtores e ameaças de disputas legais.

Para a cúpula da OMS, se o mundo fracassou em estabelecer um acordo de cooperação e solidariedade para lutar contra o vírus que já matou mais de 500 mil pessoas, o cenário pode abrir uma crise profunda na disputa pela vacina. Uma demonstração dessa situação foi dada com o comércio de respiradores e máscaras, repleto de desvios, verdadeiros leilões de cargas e jogadas comerciais.

Na esperança de evitar esse novo capítulo de uma crise global, a tentativa da comunidade internacional agora é a de fechar um acordo sobre a vacina, antes mesmo que o produto chegue ao mercado e justamente para garantir que a disputa que se viu em março e abril não se repita em uma nova escala, ainda maior.

O temor é de que os países mais ricos simplesmente comprem todas as primeiras doses, deixando o restante do mundo com uma séria escassez.

Tanto nos EUA como na Europa, movimentações já dão indicações de que o cenário de concorrência pode se concretizar. Em Bruxelas, por exemplo, a UE reservou bilhões de euros para já negociar a pré-compra com multinacionais. Em Washington, tratamentos foram alvo de uma ofensiva de compras do governo, entre eles o remdesivir.

Em Genebra, um mecanismo foi proposto nesta semana para estabelecer regras: o Acordo Global para Garantir uma Alocação Justa de Produtos da Covid-19. Trata-se de um projeto que envolve a OMS e a aliança de vacinas, conhecida como Gavi, além de outras entidades e governos.

Em meados de junho, os primeiros detalhes foram apresentados aos embaixadores de todo o mundo. Um segundo encontro ocorreu na semana passada. Agora, um texto de rascunho do acordo foi elaborado e a meta é de que o entendimento esteja concluído ao final de julho.

Pelo projeto, critérios seriam estabelecidos para que grupos recebam de forma prioritária a vacina. Isso incluiria profissionais do setor de saúde, idosos e adultos com problemas de saúde. Juntos, esses três segmentos representariam cerca de 20% da população mundial e a meta é de que 2 bilhões de doses sejam produzidas até o final de 2021. O projeto envolve US$ 18,1 bilhões, dos quais US$ 11 bilhões são necessários imediatamente.

Mas para chegar a todos esses segmentos prioritários na vacinação, seriam necessários 3,7 bilhões de doses, considerando que cada pessoa terá de tomar duas doses da futura vacina.

Não haverá, porém, produtos para todos num primeiro momento e uma das estratégias da OMS é de que, no novo acordo, fique estabelecido que todos os países receberiam, num primeiro momento, um volume suficiente para vacinar 3% de sua população. Com isso, todos os profissionais de saúde e trabalhadores sociais seriam atendidos e todos os países seriam atendidos.

Quem paga?

Mas, para muitos governos, o projeto ainda não garante que, de fato, todos tenham acesso os produtos, um promessa martelada pela agência de Saúde desde o primeiro dia da crise. Em documentos da Aliança de Vacinas - a Gavi, fica claro que existem dois níveis de países no pacote.

Um deles é composto por países de renda baixa e que, portanto, serão apoiados com doações e envio de remédios e vacina.

O outro nível é composto por países ricos e países de renda média, entre eles o Brasil, Rússia, Argentina ou México. Esse segundo grupo também terá o direito de atender a 20% de suas populações com a vacina. Mas serão obrigados a pagar e a depositar, já de entrada, 10% do custo.

A coluna apurou que o governo brasileiro já recebeu o esboço do acordo e, em Brasília, está avaliando seu impacto no Brasil. Mas o principal ponto de preocupação se refere às indicações de que países de renda intermediária, exatamente como o Brasil, terão de financiar suas próprias compras.

Das 2 bilhões de doses que o projeto planeja garantir ao mundo até o final de 2021, 1 bilhão iria para esse grupo de países de renda intermediária e elevada.

Existe ainda outro obstáculo: governos que contribuem para o fundo mundial que será usado para criar um estoque global de vacinas terão, em tese, prioridade na compra dos produtos. Para entidades, isso significa que os mais ricos que vão depositar dinheiro no projeto também também prioridades.

Entre os governos, há ainda outra polêmica: pelo projeto, países receberão com base em sua população acima de 65 anos de idade. Mas, para dezenas de sociedades em desenvolvimento, a taxa de idosos não é a mesma de um país rico. O que esse grupo quer saber é se, como resultado, eles receberão um número menor de doses.

Há duas semanas, a vice-diretora adjunta da OMS, a brasileira Mariângela Simão, explicou à coluna que o plano havia prevê a criação de uma espécie de estoque mundial de vacinas e que dali sairiam lotes para locais mais necessitados com base em critérios técnicos.

O monopólio do futuro

Entidades especializadas em saúde pública já alertam que o projeto ameaça deixar milhões de pessoas sem acesso ou coloca governos de países em desenvolvimento em séria dificuldade financeira.

No final de junho, 45 organizações internacionais do setor da saúde escreveram uma carta para o conselho administrativo da Gavi para alertar que, pelo atual projeto, a promessa de que a vacina seja um "bem público" jamais será cumprida.

O centro da crítica se refere à preservação da patente, sem qualquer indicação de que a propriedade intelectual das empresas seja flexibilizada ou mesmo suspensa.

"Em uma abordagem "business as usual" de propriedade intelectual, as empresas farmacêuticas podem reter e buscar direitos sobre as vacinas em desenvolvimento, resultando em vacinas que são proprietárias e estão sob o monopólio de empresas individuais", alerta o grupo formado por entidades como Médicos Sem Fronteira, Access to Medicines Ireland, Foundation for Integrative AIDS Research, Health Action International, Knowledge Ecology International, Public Eye e STOPAIDS.

"Como não houve mudança na forma como a propriedade intelectual é tratada durante a pandemia, as empresas farmacêuticas são capazes de monopolizar o futuro", dizem.

Segundo o grupo, mais de US$ 4,5 bilhões de financiamento público e filantrópico já concedidos a empresas para pesquisa e desenvolvimento de vacinas, o que em parte vem dos contribuintes.

"O financiamento público e filantrópico já concedido deverá resultar na entrega de vacinas eficazes que são designadas como bens públicos globais: vendidas a preço de custo e livres de controle de monopólio", defendem.

"Embora apreciemos a necessidade de soluções urgentes e rápidas, advertimos contra a pressa em adotar uma estratégia falha que corre o risco de comprometer o acesso futuro", alertam.

Falta de transparência

Outra acusação se refere à suposta falta de transparência das entidades. Segundo a carta, a aliança de vacinas fechou um acordo de US$ 750 milhões com a AstraZeneca para 300 milhões de doses de sua potencial vacina.

"Embora a AstraZeneca reclame um preço "sem lucro" em seu acordo com a Gavi, não há transparência com a qual verificar esta informação", dizem. "Vale a pena notar que enquanto Gavi normalmente negocia preços 90% menores que os países industrializados (com empresas de vacina), este acordo é apenas 37% menor que o dos Estados Unidos, um dos países mais ricos do mundo", alertam. "Não deve haver lucro por trás desta pandemia global", apelam.

Um dos problemas ainda identificados é o estabelecimento de preços escalonados entre o mecanismo global e as empresas. Isso, segundo eles, proporcionaria "às empresas farmacêuticas a oportunidade de lucrar ainda mais com esta crise de saúde global".

"O nacionalismo míope é inaceitável diante desta pandemia onde a alocação equitativa de futuras doses de vacina COVID-19 entre países e a solidariedade global devem ser primordiais", defendem as entidades. "Portanto, apoiamos o conceito de um mecanismo global como um contraponto necessário às medidas nacionalistas de estocagem, e como um meio de proteger a saúde pública e conseguir uma verdadeira equidade no acesso às futuras vacinas COVID-19", diz o grupo que, por décadas, lutou exatamente para garantir o acesso ao tratamento contra o HIV nos países mais pobres.

"Entretanto, um mecanismo global precisa garantir que todos os países estejam vinculados a ele e que a desigualdade subjacente no acesso aos cuidados de saúde seja tratada priorizando a proteção das populações mais vulneráveis que vivem em ambientes com recursos limitados", completam.