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Jamil Chade

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Precisamos de uma parteira': pandemia e a guerra reinventam o futuro

5.mar.2022 - Mulher e criança observam de um trem enquanto fogem da invasão russa da Ucrânia em direção à Polônia, na estação de trem em Lviv, na Ucrânia. - KAI PFAFFENBACH/REUTERS
5.mar.2022 - Mulher e criança observam de um trem enquanto fogem da invasão russa da Ucrânia em direção à Polônia, na estação de trem em Lviv, na Ucrânia. Imagem: KAI PFAFFENBACH/REUTERS

Colunista do UOL

07/03/2022 06h13

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Bergamo. Um nome que marcará uma geração de italianos que, no epicentro da pandemia em 2020, se depararam com caminhões das forças armadas levando dezenas de corpos de vítimas da covid-19. Nos jornais, páginas e mais páginas com obituários choravam.

Em Roma, nas semanas seguintes, relatos emocionados da escritora brasileira Juliana Monteiro revelavam com uma sensibilidade extraordinária e triste uma cidade que parecia estar em uma guerra, com sirenes de ambulâncias abrindo caminho por ruas. Ruas desertas repletas de dor e medo.

Em 2020 e 2021, um continente rico viveu um choque. Países desenvolvidos descobriram que mesmo seus exemplares sistemas de saúde entraram em colapso. Dois anos depois, até a expectativa de vida caiu, enquanto alguns sussurravam: e se a pandemia não acabar?

A devastação que a pandemia gerou era incompreensível para uma geração de europeus que pensava que a ciência e o estado do bem-estar social tinham elevado a sociedade a um patamar de invencibilidade. Uma sociedade que estava convencida que histórias dessa dimensão eram exclusividade de locais distantes e pobres. Tão distantes e tão pobres que perdiam os traços humanos de suas vítimas.

Profunda e intolerante com o sofrimento, Monteiro certa vez contou que sua filha, Anita, fez seu coração despedaçar quando perguntou: "mamãe, como era a vida antes da pandemia?".

Dois anos depois, o continente e o mundo voltavam a respirar. Era uma vez mais possível conhecer o sorriso das pessoas. Casais apaixonados já não precisavam descer a máscara num primeiro encontro para se beijar.

Em 2022, apesar do susto da ômicron, era o ano da volta à normalidade e da celebração da vida. Para todos? Certamente não. Mais de 2 bilhões de seres humanos continuam aguardando pela vacina. No inconsciente coletivo de sociedades egoístas, esses seres humanos não viviam aqui, o que lhes faz menos humanos.

E eis que eclode a maior mobilização de tropas, a maior crise humanitária no continente europeu em décadas. A sombra nuclear, esquecida pelo imaginário coletivo, faz seu retorno nos berros das manchetes, enquanto meus filhos, no carro, silenciam de pavor diante dos relatos de crimes transmitidos pelos correspondentes enviados pelas rádios locais para um destino que está duas horas daqui, em avião. "Chegará aqui, papai?", me perguntou Marc, de 8 anos.

No centro de Genebra, cartazes pedem doações aos refugiados ucranianos. Famílias em diferentes partes do continente se organizam para enviar alimentos e se apresentar como voluntários, vítimas de um regime no Kremlin que já demonstrou que está disposto a sacrificar vidas em nome do poder. Nas escolas, reuniões com toda a comunidade de alunos são convocadas para reforçar a ideia da paz.

Em pleno século 21, a Europa volta a ser confrontada com histórias de bravura, de dor e da morte. Desta vez, as imagens trazem pessoas que são um reflexo daqueles que estão do outro lado da televisão.

Hipócritas, fundações e entidades do "mundo civilizado" se apressam para fazer suas doações para atender 1 milhão de refugiados. Ignoram ou optam por ignorar que o mundo conta com outros 50 milhões de refugiados abandonados?

Ouvimos histórias de como uma ucraniana pariu em uma das estações de metrô, fugindo das bombas. A história me lembrou do poema da japonesa Sadako Kurihara, que relatava sua experiência durante os ataques nucleares contra seu país. Lembrando: bombas nucleares lançadas por uma democracia que se apresenta ao mundo com seus valores imaculados.

Noite no porão de uma estrutura de concreto agora em ruínas.
Vítimas da bomba atômica se aglomeram numa sala;
Estava escuro - nem mesmo uma única vela.
O cheiro de sangue fresco, o fedor da morte,
A proximidade de pessoas suadas, os gemidos.
De tudo isso, e eis uma voz:
"O bebê está chegando!"
Naquele porão infernal,
Naquele exato momento, uma jovem tinha entrado em trabalho de parto.
No escuro, sem um único fósforo, o que fazer?
As pessoas se esqueceram de suas próprias dores, preocupadas com ela.
E então: "Eu sou parteira. Vou ajudar com o parto".
A própria oradora, gravemente ferida, havia gemido apenas momentos antes.
E assim nasceu uma nova vida no escuro daquele poço de inferno.
E assim, a parteira morreu antes do amanhecer, ainda banhada em sangue.
Vamos ser parteiras!
Sejamos parteiras!
Mesmo que dêmos nossas próprias vidas para isso.

O poema poderia ter sido escrito em 2022?

Irônico, o pesadelo nuclear retorna justamente num momento em que governos europeus pressionavam para que a energia atômica —e suas centrais— fossem vendidas como a esperança de uma economia mais "ecológica".

Assim como Bergamo, a Ucrânia é o fantasma da morte que volta a rondar e que irá forjar uma geração.

Não apenas por explicitar o sofrimento. Mas também por revelar que a máscara caiu.

Caiu quando governos ricos entupiram seus armazéns com vacinas, esvaziando o abastecimento aos países mais pobres.

Caiu agora quando, apesar de todos os crimes indiscutíveis de Putin, ficou evidenciada a arrogância das potências ocidentais num tabuleiro geopolítico em busca de poder.

Caiu quando, ao impor sanções, o ocidente revelou como o dinheiro sujo jamais tinha sido um problema, enquanto convinha.

Caiu quando políticos ocidentais subornados por anos por oligarcas russos ficaram despidos, de moral e de apoio.

O espectro da morte que marcará nossa geração nos assombra por estar vestido dos crimes da desigualdade, da arrogância e da insustentabilidade do egoísmo.

Menos de 12 horas antes dos primeiros ataques contra a Ucrânia, fui jantar com um embaixador europeu, do mais alto escalão da diplomacia internacional. A conversa deveria ter sido sobre um outro tema de política externa. Mas a Ucrânia dominou o cardápio. Quando eu questionei como seria uma eventual guerra em Kiev, ele respondeu quase indignado:

"Você acha mesmo que Putin teria a ousadia de chegar até Kiev? Estamos falando de uma capital europeia", exclamou.

Voltei para casa e, horas depois em plena madrugada, eu era acordado por telefonemas sobre o início da invasão.

Seja qual for o destino dessa guerra, esses anos estão sendo escritos sob o som de um réquiem de um mundo que se sustentava por um frágil equilíbrio.

A reinvenção do futuro está ocorrendo diante de nossos olhos. Basta abri-los.

Precisamos uma parteira.