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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Ucrânia gera onda de doações, enquanto milhões são abandonados pelo mundo

Refugiado da invasão russa durante uma nevasca - Reuters
Refugiado da invasão russa durante uma nevasca Imagem: Reuters

Colunista do UOL

15/03/2022 04h00

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Em apenas duas semanas, a crise na Ucrânia gerou uma onda de doações sem precedentes e garantiu recursos em um volume inédito para o curto espaço de tempo entre as primeiras bombas e os planos estabelecidos pela ONU (Organização das Nações Unidas) para o resgate de milhões de ucranianos.

Mas se a generosidade transborda no caso da Ucrânia e é urgente, dados oficiais da ONU obtidos pela coluna revelam que dezenas de crises pelo mundo e milhões de pessoas estão sendo simplesmente ignoradas pela comunidade internacional.

Em apenas 20 dias, a guerra na Ucrânia e as fotos nas manchetes de jornais pelo mundo permitiram que a ONU arrecadasse dez vezes mais que as doações em todo o ano de 2021 para algumas das crises mais graves na África, América Latina ou na Ásia.

"Em pouco mais de duas semanas, empresas, fundações e filantropos contribuíram com mais de 200 milhões de dólares para a resposta de emergência do Acnur na Ucrânia", disse o Alto Comissariado da ONU para Refugiados.

As doações já se aproximam a 50% de tudo o que a ONU havia solicitado como assistência emergencial aos deslocados dentro do país e aos refugiados em toda a região. E isso sem contar ainda o valor que será depositado pelos governos.

"Neste momento, todos os olhos ao redor do mundo estão voltados para a Ucrânia. Somos solidários com as pessoas que fogem por suas vidas, cujas famílias estão sendo dilaceradas. Agradecemos ao setor privado por sua generosidade esmagadora", disse a embaixadora da Boa Vontade da ONU, Cate Blanchett.

"Quero agradecer às empresas, fundações e filantropos de todo o mundo pela gentileza e generosidade que demonstraram ao ajudar as pessoas que fogem da guerra na Ucrânia", disse o Alto Comissário da ONU para Refugiados Filippo Grandi.

A crise levou empresas como a Ikea a doar 20 milhões de euros para apoiar a resposta da agência à emergência humanitária.

Per Heggenes, CEO da Fundação Ikea, chegou a lançar um apelo para que "governos, empresas e filantropos do mundo" se unam à multinacional e "aumentem o apoio de ajuda à ONU e às pessoas que fogem da Ucrânia". Na lista dos doadores para a crise estão empresas como Google.org, Volkswagen, Mitsubishi Electric Corporation, Mazda Motor Corporation, Deloitte, JYSK, AUDI, Marks & Spencer, Banco Santander, Vodafone Foundation, Armani, Prada Group, Gucci e tantas outras.

Solidariedade Seletiva

Mas se a onda de doações foi comemorada na ONU, diante de quase 3 milhões de refugiados, departamentos que se ocupam de outras crises pelo mundo não deixaram de destacar a solidariedade seletiva da comunidade internacional.

Para 2022, a ONU prevê que vai precisar de US$ 41 bilhões para prestar socorro a 183 milhões de pessoas em 63 países. Mas, terminando o terceiro mês do ano, a entidade recebeu apenas 3,5% do valor necessário para atender às vítimas de guerras, pobreza e desastres ambientais.

Para El Salvador, não entrou nenhum centavo ainda em 2022 em doações, mesma situação vivida por Moçambique. O Líbano, que causou comoção internacional, arrecadou apenas 8% do que espera para o ano.

Em 2021, a agência conseguiu arrecadar apenas 49% do que havia solicitado dos doadores internacionais.

Nem todo o sofrimento humano foi alvo de uma resposta internacional na proporção que ocorre hoje na Ucrânia.

Para os 6 milhões de refugiados venezuelanos, por exemplo, a ONU havia solicitado para 2021 um total de US$ 1,4 bilhão. Mas terminou o ano com apenas 40% do dinheiro necessário. Para a saúde desses refugiados, só recebeu 10% dos US$ 210 milhões que precisava.

Para o Burundi, a ONU só recebeu 36% dos US$ 194 milhões que precisava para ajudar a população local. No Chade, os planos humanitários foram atendidos em apenas 31%.

No Haiti, o país mais pobre do Hemisfério Ocidental, os números revelam que a ONU precisava de US$ 235 milhões para garantir alimentos e remédios para a população do país. Mas, em doze meses, conseguiu arrecadar apenas 27%, o equivalente ao que o drama ucraniano recebeu em apenas três dias de doações.

Locais como Mali, Sudão ou Honduras tampouco conseguiram mais que um terço do volume de dinheiro necessário.

Mesmo na Síria, onde mais de 300 mil pessoas morreram em dez anos de guerra e 13 milhões estão vivendo como refugiados ou deslocados internamente, a ONU convenceu doadores a enviar apenas 46% dos US$ 4,2 bilhões que necessitava. 90% dos refugiados sírios no Líbano vivem em extrema pobreza.

As vítimas da seca no Quênia foram ainda mais ignoradas. Em todo o ano de 2021, receberam apenas US$ 15 milhões, 10% do que a ONU precisava e menos de um décimo de tudo o que foi para a Ucrânia.

Outra guerra de enorme proporção, a do Iêmen, também viu o resgate humanitário ser financiado em apenas 32%. Lá, metade das crianças abaixo de cinco anos de idade está desnutrida, um total de 2,2 milhões de vítimas. 12 milhões precisam de ajuda para sobreviver.

Nada, porém, equivale à situação da República Democrática do Congo. O país, um dos cenários mais dramáticos de conflitos militares no século 21, recebeu meros 4% do dinheiro que a ONU solicitou para ajudar os miseráveis africanos em 2021.

Mas essas crises, sussurram nos corredores da entidade, não estão nas manchetes do planeta.