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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Chefe da ONU condena ataques de Bolsonaro contra urna, poderes e democracia

Michelle Bachelet, alta comissária da ONU para Direitos Humanos - Jamil Chade
Michelle Bachelet, alta comissária da ONU para Direitos Humanos Imagem: Jamil Chade

Colunista do UOL

25/08/2022 05h08

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O presidente Jair Bolsonaro precisa garantir a democracia, e seus ataques contra o Judiciário, urnas e democracia preocupam. O alerta é da alta comissária da ONU (Organização das Nações Unidas), Michelle Bachelet, que ainda se disse alarmada com o fato de o brasileiro ter convocado seus apoiadores para manifestações no dia 7 de setembro.

Nesta quinta-feira, em sua última coletiva de imprensa antes de deixar seu cargo nas Nações Unidas, ela citou a situação brasileira e fez uma avaliação da situação dos direitos humanos no país nos últimos quatro anos e, em especial, a ofensiva do presidente brasileiro.

As declarações de Bachelet são as mais duras já feitas por uma liderança internacional contra o comportamento do presidente brasileiro, expondo o que, por meses, era a percepção internacional sobre Bolsonaro e seus ataques contra a democracia.

"Acho que existem muitas situações muito difíceis no Brasil agora sobre direitos humanos. Não só agora. Mas estou seriamente preocupada como informes de aumento da violência política, a manutenção do racismo estrutural e o encolhimento de espaço cívico", disse.

De acordo com ela, a ONU irá acompanhar de perto os impactos em direitos humanos e o impacto sobre as liberdades fundamentais no processo da eleição e de seus desdobramentos após a votação. Sua preocupação é, em especial, por conta do discurso de ódio e ataques contra candidatos e legisladores, especialmente contra minorias.

"Ataques contra parlamentares e candidatos, especialmente os afrobrasileiros, LGBTI e mulheres, preocupam", disse. Ela lembrou como uma recente visita de um relator da ONU ao Brasil já acenou para tais ameaças e que tal cenário seria um obstáculo para a democracia e a participação civil.

"É essencial que o presidente assegure a democracia"

Bachelet, porém, destinou longos minutos a tecer duras críticas contra o presidente brasileiro. "Bolsonaro intensificou seus ataques ao Judiciário e ao sistema de votos eletrônicos, inclusive em reuniões com embaixadores (estrangeiros) em julho e que gerou forte reação", alertou.

"O que é mais preocupante é que ele chamou seus apoiadores para manifestar contra as instituições do Judiciário no dia 7 de setembro", afirmou. Segundo ela, isso levou a oposição a adiar a manifestação que estava sendo programa para o mesmo dia, para evitar violência.

"Tenho que dizer que, tendo sido uma chefe de estado, um chefe de estado precisa respeitar outros poderes, deve respeitar o Poder Judiciário, o Legislativo. Não deve fazer ataques contra outros. É essencial que o presidente assegure a democracia", insistiu. "E a democracia exige o respeito por outros poderes", declarou.

"[Atacar outros Poderes] não é uma realmente uma boa decisão, especialmente por estar no meio de uma eleição", disse.

Bachelet admite que existem situações nas quais um presidente pode não concordar com decisões de outros Poderes, mas elas devem ser respeitadas. "Você não pode fazer coisas que aumentem a violência e ódio contra instituições democráticas e que devem ser respeitadas e fortalecidas. E não minadas por meio de um discurso político forte", disse a chilena.

Bachelet admitiu que a violência pode ocorrer numa eleição em qualquer país. Mas quando você é um candidato ou um presidente que é candidato, deve ser muito cuidadoso para garantir que haja a melhor condição possível para que as pessoas se sintam em segurança para ir votar", disse.

Ela ainda citou o assassinato de um membro do PT, em Foz do Iguaçu. "Em julho, um apoiador de Bolsonaro matou um apoiador de Lula. Não é que milhares de casos ocorreram. Mas esses casos não deveriam ocorrer. E quando um líder usa uma linguagem que pode ser usada na direção errada, isso pode ser muito ruim. Muito", completou.

Bachelet explicou, ao final, que não estava falando apenas como alta comissária da ONU. "Mas como alguém que sente que líderes precisam garantir que os países sejam capazes de progredir numa direção onde o diálogo, o respeito pelos outros exista. Isso é o que é a democracia. A possibilidade de que todos possam falar, discutir e defender suas posições, mas de forma respeitosa", completou.

Críticas de Bolsonaro causaram mal-estar na diplomacia regional

Bachelet tem um histórico de denúncias contra o governo de Bolsonaro. Ainda em 2019, ela criticou a violência policial no Brasil, o que levou o presidente a rebater a chilena, inclusive elogiando Augusto Pinochet. O general chileno foi o responsável pela morte do pai de Bachelet que, por sua vez, teve de deixar o Chile como exilada política.

Os comentários de Bolsonaro causaram profundo mal-estar na diplomacia regional, levando até mesmo a direita chilena a tecer críticas contra o brasileiro e demonstrar apoio à ex-presidente chilena.

Mais recentemente, ela fez um alerta sobre a preocupação de seu escritório diante da violência durante as eleições. Ela também pediu um pleito "sem interferências". Os comentários de Bachelet irritaram o governo Bolsonaro. Num discurso no Conselho de Direitos Humanos da ONU, o Itamaraty criticou seus comentários e fez um alerta de que o país não aceitaria interferências externas.

Venezuela: espaço cívico continua a encolher

Bachelet destacou ainda como houve algum progresso na Venezuela em termos de direitos humanos. Mas ainda há longo caminho e cita o fato de que o espaço cívico continua a ser fechado.

"Há muito a ser feito", disse. Ela defendeu que seja restabelecido o diálogo entre o governo e a oposição, num caminho para que as próximas eleições possam ser "justas e transparentes". "O diálogo é fundamental", afirmou.

Bachelet ainda revelou que vai telefonar o presidente Nicolas Maduro, antes de ela deixar o cargo. "Não quero que promessas sejam esquecidas", disse a chilena. Segundo ela, uma "longa lista" de pontos de preocupação será apresentada ao governo venezuelano.

Até hoje, por exemplo, os observadores de seu escritório não foram autorizados a ter acesso aos julgamentos.

A chilena, porém, defendeu sua estratégia sobre Caracas. "Montamos um esquema para criar confiança com o governo e sociedade civil. Antes, não tínhamos nada. Não estávamos la. Agora, temos algo. Vamos ter 16 pessoas no país. Vamos poder trabalhar com vítimas, famílias, conseguimos visitar prisões", disse.

Nível extraordinário de tensão

Depois de quatro anos no comando dos temas de direitos humanos da ONU, a chilena deixa o cargo no final do mês. Apesar de poder tentar um segundo mandato, ela anunciou em junho que deixaria o alto comissariado.

Nos últimos dias, entidades de direitos humanos têm criticado sua postura de não denunciar de forma suficiente as violações cometidas na China, assim como a não publicação de um informe sobre a situação no país asiático.

Ela, porém, garante que continua a trabalhar no documento para que ele seja tornado público antes do final do mês. "Estamos trabalhando no informe. Recebemos informações do governo e teremos de rever com cuidado", afirmou.

Segundo Bachelet, os resultados do inquérito foram apresentados ao governo chinês. "Se estou sob pressão? Sempre. Extraordinária pressão. Mas nosso trabalho é guiado por análise de fatos e isso não vai me fazer não publicar", garantiu. Nos últimos dias, ela recebeu uma carta assinada por 40 países pedindo que ela não publique o documento.

"A situação é séria. Levantei preocupações sobre violações de direitos humanos e o informe olha profundamente para isso", disse. Segundo ela, o atraso na publicação do documento ocorreu para permitir que ela viajasse para a China e falasse diretamente às autoridades sobre as alegações. Ela ainda defendeu seu estilo, indicando que nem sempre fez denúncias públicas como forma de para garantir resultados concretos para vítimas. Por isso, em certos casos, optou por caminhos diplomáticos.

De uma forma geral, porém, ela ainda denunciou um "nível extraordinário" de tensão entre governos e alertou que o multilateralismo está sob pressão. Outra preocupação da chilena se refere às respostas de diferentes governos que, diante de protestos, reduziram espaço para debate.

Bachelet também fez um apelo para que governos, diante das crises recentes e inflação nos preços de alimentos e energia, ampliem subsídios para reduzir o impacto nas populações de uma explosão da pobreza.

Guerra na Ucrânia: possíveis crimes contra a humanidade

Em seus comentários nesta quinta-feira, ela fez um apelo para que Vladimir Putin "pare os ataques contra a Ucrânia", assim como a região de uma usina nuclear deve estabelecer um cessar fogo imediato. Segundo ela, com mais de 5 mil mortos entre civis e milhares de outros feridos, a Ucrânia é hoje um palco de possíveis crimes de guerra.