Jamil Chade

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Reportagem

Lula usa cúpula com UE para criticar potências, guerra e cobrar reformas

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez duras críticas contra a Europa no campo ambiental, comercial e geopolítico, insistindo que o comportamento das potências não tem respeitado nem o direito internacional e nem o Conselho de Segurança da ONU.

Leia a íntegra do discurso de Lula.

As cobranças foram feitas na abertura da Cúpula União Europeia-América Latina, que ocorre nesta segunda-feira em Bruxelas. Mais cedo, os europeus anunciaram um pacote de 45 bilhões de euros para investir na região, na esperança de frear sua perda de espaço e reaproximar os dois blocos.

Para Lula, porém, a cúpula é um momento de dizer "basta" a uma certa atitude dos centros de poder e diante da desigualdade no mundo. Sua avaliação é de que não há mais como esperar e uma reformas das instituições devem ser realizadas.

O tom do presidente brasileiro é coerente com seus últimos discursos nos fóruns estrangeiros, onde tem alertado para a falência da atual estrutura da ONU. Para Lula, não há como continuar com o atual modelo de relações internacionais.

A visão no governo brasileiro é de que, com uma transformação do poder mundial, essa é a oportunidade de reivindicar uma nova inserção internacional para o país na condição de protagonista.

Críticas contra o protecionismo e meio ambiente

Nesta segunda-feira, a primeira crítica explícita aos europeus foi sobre o posicionamento do bloco em relação ao comércio e meio ambiente. Segundo ele, o Brasil quer "assegurar uma relação comercial justa, sustentável e inclusiva" e o acordo entre Mercosul e UE "é uma prioridade". Mas ele deixou claro que o pacto "deve estar baseada na confiança mútua e não em ameaças".

Dentro do governo brasileiro, a proposta de pacto apresentada pela Europa foi considerada como inaceitável, justamente por prever uma espécie de regime de punição.

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Outro ponto foi a defesa de valores ambientais. Segundo Lula, isso "não pode ser desculpa para o protecionismo".

No acordo proposto pelos europeus, a violação do Acordo de Paris e outras exigências poderiam acarretar em punições aos produtos nacionais, uma ideia que está sendo recusada pelo Brasil. O temor do governo é de que a questão ambiental seja usada como argumento para fechar mercados às exportações nacionais.

Lula ainda destacou como o poder de compra do Estado é uma ferramenta essencial para os investimentos em saúde, educação e inovação. "Sua manutenção é condição para industrialização verde que queremos implementar", disse, numa referência a outro trecho do acordo que o Brasil quer rever e no qual a Europa exige abertura do mercado de licitações públicas do país.

O presidente brasileiro também apresentou sua visão do que seria o desenvolvimento na região Norte. "Proteger a Amazônia é uma obrigação. Vamos eliminar seu desmatamento até 2030. Mas a floresta tropical não pode ser vista apenas como um santuário ecológico", alertou.

Em sua avaliação, o desenvolvimento sustentável possui três dimensões inseparáveis: a econômica, a social e a ambiental. "O mundo precisa se preocupar com o direito de viver bem dos habitantes da Amazônia", disse.

Lula ainda apontou que a relação entre os dois blocos "deve refletir as realidades e prioridades de ambos os lados do Atlântico". "Para a América Latina e o Caribe, isso se traduz em um enfoque claro na redução das desigualdades e na erradicação da fome e da pobreza", explicou.

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"Temos que encontrar caminhos para superar as assimetrias de desenvolvimento econômico e social", disse.

Ele aplaudiu a iniciativa dos europeus de destinar investimentos. Mas alertou que elas devem "contemplar transferência de tecnologia e real integração de cadeias produtivas".

"Precisamos de uma parceria que ponha fim a uma divisão internacional do trabalho que condena a América Latina e o Caribe ao fornecimento de matéria-prima e de mão-de-obra migrante, mal remunerada e discriminada", insistiu.

Ricos cada vez mais ricos

Para Lula, a humanidade parece não ter aprendido a lição da pandemia da covid-19. "Mantivemos os hábitos irresponsáveis de consumo, incompatíveis com a sobrevivência do planeta. A desigualdade só fez crescer: os ricos ficaram ainda mais ricos, e os pobres ainda mais pobres", afirmou.

O presidente ainda citou os mais recentes dados da FAO que indicam para a existência de 735 milhões de seres humanos que passam fome.

"E mesmo com todos os sinais de alerta emitidos pelo planeta, ainda há quem negue a crise climática. E mesmo os que não a negam hesitam em adotar medidas concretas", criticou.

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Lula lembrou como, em 2009, os países ricos se comprometeram a destinar 100 bilhões de dólares ao ano para os países em desenvolvimento, "como forma de compensação pelo mal que causaram ao planeta desde a revolução industrial". "Esse compromisso nunca foi cumprido", acusou.

"Como se não bastasse, a guerra no coração da Europa veio para aumentar a fome e a desigualdade, ao mesmo que elevou os gastos militares globais. Apenas em 2022, em vez de matar a fome de milhões de seres humanos, o mundo gastou 2,24 trilhões de dólares para alimentar a máquina de guerra, que só causa mortes, destruição e ainda mais fome", disse.

Ucrânia e críticas contra sanções

Lula ainda voltou a atacar o comportamento das potências em relação à guerra na Ucrânia. Segundo ele, trata-se de uma "mais uma confirmação de que o Conselho de Segurança das Nações Unidas não atende aos atuais desafios à Paz e à Segurança. Seus próprios membros não respeitam a Carta da ONU", criticou.

O brasileiro lembrou como, em linha com a Carta das Nações Unidas, o Brasil "repudiou veementemente o uso da força como meio de resolver disputas".

Mas não deixou de criticar a forma pela qual a situação vem sendo lidada. "O Brasil apoia as iniciativas promovidas por diferentes países e regiões em favor da cessação imediata de hostilidades e de uma paz negociada. Recorrer a sanções e bloqueios sem o amparo do direito internacional serve apenas para penalizar as populações mais vulneráveis", disse.

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"Precisamos de paz para superar os grandes desafios que temos diante de nós e isso implica mudanças sistêmicas profundas. Dividir o mundo em blocos antagônicos seria uma insensatez", alertou.

Em sua visão, "é inadiável reformar a governança global" e indicou que esse será um dos principais temas da presidência brasileira do G-20, no próximo ano.

"As legítimas preocupações dos países em desenvolvimento devem ser atendidas, e precisamos estar adequadamente representados nas instâncias decisórias", apontou.

Instabilidade

Lula ainda repetiu suas cobranças por reformas nas estruturas internacionais. "O atual modelo de governança global perpetua assimetrias, aumenta a instabilidade e reduz as oportunidades para os países em desenvolvimento", disse.

O brasileiro deu exemplo do Haiti, onde existe "uma grave crise multidimensional, que não se resolverá caso seja abordada apenas pelas vertentes migratória e de segurança". "Sua superação ocorrerá com a mobilização de recursos adequados para projetos de desenvolvimento estruturantes", afirmou.

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Abertura de reunião marcada por críticas latino-americanas contra a UE

Lula não foi o único a passar a uma ofensiva contra o comportamento dos europeus. Alberto Fernandez, presidente da Argentina, também criticou os europeus e alertou que o acordo Mercosul-UE precisa buscar um "desenvolvimento equilibrado". "Ambos os lados precisam de beneficiar. Se só um se beneficia, não é um acordo. É um escárnio", disse.

"Numa relação equilibrada, Europa e América Latina podem ajudar a construir um mundo que não sucumba ao bipolarismo", disse o argentino, numa referência à disputa entre China e EUA.

Ralph Gonsalves, primeiro-ministro de Saint Vincent e Grenadines e presidente da Celac (Comunidade dos Estados Latino-Americanos) neste ano, falou em nome da região e também elevou o tom de cobranças contra os europeus.

Segundo ele, a relação continua desigual entre a América Latina e Europa e apontou que "os mestres da elite" não são mais aceitos pela população mundial, e as "formas de ontem não podem mais ser a regra".

Ele ainda criticou abertamente a tentativa de colocar na agenda da cúpula a guerra na Ucrânia. Segundo ele, a América Latina entende que o tema preocupa a Europa. Mas espera que o evento não seja o campo de batalho sobre a questão. Para o bloco, a crise está sendo lidada em outros fóruns e, portanto, o evento exige "maturidade diplomática".

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O representante da região ainda pediu canais de diálogo, e não a demonstração da supremacia e "dominação imperial".

Para o primeiro-ministro, muitos se perguntam por qual motivo existe uma mobilização para ajudar a Ucrânia, sem que palestinos e africanos sejam levados em consideração. "Para nós, a pergunta é: o que há de novo? Quem dá as ordens".

Mas Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, deixou claro que o tema da guerra não tem como ser evitado e alertou que os ataques russos são "ilegítimos". "A guerra viola a carta da ONU", disse. "A Rússia não deve ser autorizada a ter sucesso. Será uma receita para o desastre do multilateralismo", disse.

Ursula van der Leyen, presidente da Comissão Europeia, também insistiu que não se pode deixar que a força determine a lei.

Novos investimentos europeus e compromisso de longo prazo

Ela, porém, insistiu que as duas regiões olham ao mundo "com os mesmos olhos" e que a cúpula é um "verdadeiramente um novo começo para uma antiga relação".

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Temendo perder ainda mais espaço para a China, sua aposta na recuperação dessa relação é um pacote de 45 bilhões de euros para a região, até 2027 e em 135 projetos. Segundo ela, o processo garante que benefícios locais vão ser estabelecidos e indicou que a meta é a de "compromissos de longo prazo" com a América Latina.

Ela ainda apontou para o compromisso de fechar um acordo com o Mercosul em 2023. Mas admitiu: "há muito trabalho a ser feito".

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