Alta tecnologia tentará decifrar origem e rota de manto tupinambá
O manto mágico vai falar. Em 2024, o Museu Nacional da Dinamarca entregará de volta ao Brasil o manto tupinambá, um dos 11 que existem no mundo e numa viagem carregada de simbolismo. Se as peças estão em exposições, a realidade é que não existe um só manto em território brasileiro.
O processo de devolução envolveu uma longa negociação diplomática e tem como objetivo tornar o manto a peça central na reinauguração parcial do Museu Nacional no Rio de Janeiro.
Antes de embarcar para o que pode ser sua última viagem cruzando o oceano, porém, o objeto será alvo de um estudo que, com alta tecnologia, tentará determinar de onde exatamente veio e qual foi seu percurso. Usando testes de DNA e isótopos, os cientistas poderão revelar novas dimensões da história do Brasil e dos próprios europeus.
Hoje, o manto de um 1,80 metro está exposto num dos principais salões do Museu da Dinamarca. A peça foi confeccionada a partir de penas da ave guará, típica das regiões de manguezais, e que geralmente é vermelha por causa do hábito de comer caranguejos da mesma cor.
Utilizado em rituais religiosos, para agradecer ao deus sol ou na morte de um guerreiro, ele era a conexão com o divino. Um portal ao transcendental.
Mas o manto guarda uma história em grande parte a ser descoberta. Como ele saiu exatamente do Brasil há mais de 350 anos e chegou na Europa é uma incógnita.
Para a líder indígena Glicéria Tupinambá, mestranda em antropologia social, uma das hipóteses é que ele tenha sido levado durante uma troca de presentes entre indígenas e nobres europeus. Mas não se sabe nem de qual região exata no Brasil ele veio nem quem a guardou por décadas.
Entendemos que o manto teve um papel diante de autoridades, numa espécie de diplomacia.
Glicéria Tupinambá, líder indígena
Christian Pedersen, chefe de pesquisa do Museu Nacional da Dinamarca, admite que não se sabe quase nada sobre o manto. De acordo com ele, o primeiro registro encontrado é de 1689, quando aparece no inventário da coleção de um rei dinamarquês. Mas como chegou até ali é um mistério.
Não sabemos sua idade. Não sabemos como chegou [à Dinamarca]. Mas esperamos aprender um pouco mais.
Christian Pedersen, chefe de pesquisa do Museu Nacional da Dinamarca
O pesquisador destaca como diversos registros da história europeia e gravuras têm referências a nobres que usaram mantos vermelhos, como símbolo de riqueza e também como exibição de força sobre os territórios ocupados. "Era onde eles mostravam riqueza e poder, e sua relação com o mundo", explicou.
Um sinal de que o manto pode ter sido usado na Europa é o fato de que algumas de suas penas estão costuradas ao contrário, algo que Glicéria aponta que jamais teria sido feito por indígenas. "Há talvez mais uma camada de história a ser contada", destacou Pedersen.
Sua esperança é que, com a nova tecnologia, possam ser identificadas as aves exatamente foram retiradas as penas e, assim, em que região ele foi confeccionado. Os testes ainda poderão determinar por onde passou o objeto, ao longo dos séculos. "A nova tecnologia tem sido aplicada com enormes resultados", disse.
A estratégia negociadora do Brasil
O que tampouco existe nas explicações dos museus europeus é uma referência ao fato de que atos de violência podem ter sido cometidos, não apenas com o manto, mas também com milhares de objetos. Há, para muitos, um apagamento do processo de conquista e invasão.
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JAMIL CHADE
Todo sábado, Jamil escreve sobre temas sociais para uma personalidade com base em sua carreira de correspondente.
Quero receberGlicéria, porém, insiste que seu povo não solicitou o retorno de todos os cinco mantos que existem no museu dinamarquês.
Solicitamos apenas aqueles [mantos/ que quisessem voltar. Foi feita essa escuta.
Glicéria Tupinambá
Para ela, é fundamental que se "escute o manto" para entender o papel que ele teve na sociedade. "As pessoas nunca fizeram isso", lamentou. "Agora, só nós podemos contar nossa história, a partir do momento que teremos acesso ao manto", explicou.
A reivindicação indígena é compartilhada por especialistas. "Direito à memória é uma luta republicana", defende Lilia Schwarcz, historiadora e antropóloga.
A volta do manto tupinambá significa uma política de reparação da ancestralidade de grupos indígenas que tiveram sua história por tanto tempo apagada e silenciada.
Lilia Schwarcz
Livia Melzi, pesquisadora e artista, também insiste que "a volta de uma peça opara o Brasil é sem dúvida uma reparação histórica com o povo Tupinambá, com todos os povos indígenas brasileiros, mas também com o território brasileiro".
A volta do manto, porém, foi negociada sem qualquer reivindicação do Brasil por reparação ou dentro do marco de questionamento do colonialismo, tema que tem mobilizado o debate entre ex-colônias e metrópoles.
O caminho optado pelo Itamaraty foi o tratar apenas um gesto de solidariedade e cooperação na reconstrução do acervo do Museu Nacional do Rio, incendiado em 2018. A consideração era que, se o tema da reparação fosse apresentado aos europeus, o debate ganharia outra dimensão e, eventualmente, não haveria um retorno.
Tudo começou quando o embaixador Rodrigo Azevedo Santos visitou o manto em 2021 e, logo depois, leu uma reportagem na revista piauí de que nunca havia sido solicitado seu retorno ao Brasil.
Ao tirar a carga da questão colonial, ele ainda foi buscar dois apoios. Uma carta do povo tupinambá, chancelando o pedido de retorno da peça, e uma carta do Museu Nacional do Rio, indicando quais seriam os planos de exposição e que papel o item teria para a nova coleção.
Segundo Christian Pedersen, do Museu Nacional da Dinamarca, a decisão foi "difícil e complicada", mas esses fatores foram fundamentais para que a cúpula da instituição e o governo europeu dessem o sinal verde.
O dinamarquês explicou que, depois de 300 anos como parte de sua coleção, a peça foi avaliada em termos de seu valor para o Brasil e o que ela representava num museu. "Entendemos a importância gigante que teria para indígenas e para o museu no Rio", disse.
Mas ele também insistiu em despolitizar o retorno. "A questão não era se ele não pertencia aqui ou se o colonialismo representou um erro. A questão era que Brasil estava em situação especial. O fogo nos doeu também", explicou, em referência ao incêndio que destruiu o Museu Nacional em 2018.
O museu dinamarquês se orgulha de ter realizado uma das maiores repatriações de obras estrangeiras entre as instituições europeias, com o translado de 35 mil peças para a Groenlândia.
Pedersen destaca, no entanto, que a instituição não conta com uma política padrão de devolução de obras. Segundo ele, critérios são considerados quando um pedido chega. Essas solicitações, porém, são raras. Apenas três em dez anos.
"Olhamos a reivindicação, se a obtenção da peça foi ilegal ou não ética, e qual a herança cultural para aquele povo", explicou.
Não envergonhar os dinamarqueses
Pedersen defende outro comportamento ao tratar das peças que, por séculos, foram levadas de grupos tradicionais pelo mundo.
O manto tem uma história local. Mas também tem uma história para a humanidade. Quando voltar ao Brasil, ele terá uma história europeia também. O que conta sobre o colonialismo, sobre a globalização. O que queremos fazer é trazer mais historia para os objetos e mais diálogo.
Christian Pedersen, do Museu Nacional da Dinamarca
Ele admite que é o momento de "falar mais sobre história, inclusive sobre os lados mais difíceis", mas pede "equilíbrio". "Não queremos que o público que entra num Museu aqui se sinta envergonhado por ser dinamarquês", disse.
Digitalização do acervo e entrega ao Brasil
Uma das formas de superar esse debate é a cooperação entre museus. De fato, o manto é apenas um entre outros quatro que o museu dinamarquês tem guardados e que ajudam a contar a história dos tupinambás. Há ainda mais de 2.000 peças espalhadas pelos salões e arquivos e que tiveram o Brasil como ponto de partida.
Não há planos, entretanto, de ampliar o processo de devolução e nem de entregar novas peças. Segundo Pedersen, nas cartas dos indígenas, há uma declaração de que não haverá outro pedido. "Não esperamos novos pedidos", disse.
Uma forma de cooperar foi a de fechar um acordo com os brasileiros para que todas as 2.000 peças existentes na Dinamarca fossem digitalizadas. O trabalho está em sua fase final e, em setembro, os arquivos serão entregues ao Museu Nacional no Rio.
A ideia, entre a direção do novo acervo brasileiro, é o identificar todas as coleções espalhadas pelo mundo e, de forma digital, permitir que a população nacional tenha também acesso.
Para os europeus, porém, duas condições foram solicitadas dos brasileiros no processo de devolução: a primeira é que esteja em exposição à qual todos tenham acesso, inclusive os indígenas, e a segunda é que o museu no Brasil tenha condições de ter a peça pelos próximos 300 anos.
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