'Não devo explicações sobre meu aborto', diz brasileira em livro na Flip
A carioca Ana Alkimim optou por fazer um aborto. No país onde vive, a Espanha, o procedimento é legal. Mas o que ela descobriu foi o papel sempre presente do Estado, mesmo quando a decisão era exclusivamente dela.
A partir dessa experiência, Ana publica o livro O Imprevisto (Gênio Editorial), em português e espanhol. Seu primeiro lançamento ocorre em São Paulo, no dia 18 de novembro, às 19h, na livraria Patuscada. Ela ainda estará no Rio de Janeiro, no dia 21 de novembro, às 19h, no Restaurante Luiggi, e no dia 22 na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), na casa do "Escreva, Garota!", às 20h.
Contundente, lírico e emocionante, o livro tem o prefácio de Juliana Monteiro, que, já nas primeiras páginas, alerta a leitora e o leitor:
"O Imprevisto é o começo de uma conversa milenar, antiga como o mundo, feita de sussurros vermelho-vivo. Desabafo de mulheres sobre o túmulo de outras mulheres. Eco de vozes que vêm de muito antes e ainda. Poemas escritos com intenção salva-vidas."
Em entrevista ao UOL, a brasileira radicada em Madri defende que se faça uma espécie de me too do aborto. "Começando por nós as mulheres que tem o privilégio de ter feito um aborto legal, sem infligir a lei, e que por isso podemos falar sem medo", defendeu.
"O que se diz sobre o aborto são fabulações do patriarcado ou das religiões, não são nossas histórias reais", insistiu. "E é sobre elas, sobre nossas histórias reais, que se deve legislar. O aborto precisa passar a ser outra coisa, inclusive para nós mulheres, e para isso precisamos nos apropriar da narrativa sobre ele", argumentou.
Citando Silvia Federici, que também estará na Flip, Ana destaca como "o corpo da mulher é um território de disputa de poder". "Na verdade, é um território conquistado pelo capitalismo e pelo patriarcado. A regulação do aborto pelo Estado é um reflexo disso", aponta.
"Nossos corpos servem para produzir a força de trabalho que serve ao capital e, portanto, não somos livres de decidir sobre ele. E é bastante impactante quando você tem uma experiência real, mais além do conhecimento intelectual, de como isso se dá", disse.
Para ela, a luta e a história é a "tentativa de recuperar o poder sobre nossos próprios corpos".
Carioca, Ana Alkimim se mudou em 2007 para Madri. Escritora e roteirista, ela desenvolveu séries para grandes produtoras no Brasil e na Espanha e para plataformas e canais como HBO, Warner, Telecinco e Televisón Espanhola, entre outras.
Em 2020, publicou seu primeiro poemário, Precipícios, pela Editorial Ambulantes, na Espanha. Ana é mãe de três e, ao se apresentar, diz que "todos os dias sente saudade do mar".
Eis os principais trechos da entrevista:
Chade - Quando você entendeu que morava num país em que o aborto era legalizado, isso te deixou mais segura em relação à decisão tomada?
Ana Alkimim - Com certeza. Apesar de não ter sido um processo fácil, subjetivamente falando, e de eu ter enfrentado algumas dificuldades práticas quando dei início ao processo no sistema de saúde espanhol, é bastante tranquilizador saber que a prática está regulada, que existe um procedimento estabelecido para a interrupção da gravidez. Porque, afinal, é nosso corpo, é nossa saúde, é nossa vida que está em questão e que pode estar em risco, dependendo das condições em que você realiza o aborto.
Na verdade, o que foi impactante me dar contar de que se eu estivesse no meu país, no Brasil, não teria acesso a essa segurança. E foi doloroso, bastante triste para mim, pensar na quantidade de mulheres que atualmente, para além de ter que tomar uma decisão complicada e difícil, precisam se ocupar da sua própria segurança e bem-estar físico, tentar garantir sua própria sobrevivência nesse processo.
Sabendo que as mulheres pobres e negras são sempre as mais vulneráveis. E muitas vezes, são mulheres que, como eu, são mães de crianças que precisam dela, que não podem perdê-la.
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JAMIL CHADE
Todo sábado, Jamil escreve sobre temas sociais para uma personalidade com base em sua carreira de correspondente.
Quero receberQuais foram os procedimentos administrativos para realizar um aborto na Espanha?
Quando eu fiz o aborto, no final de 2021, o Estado delegava em clínicas particulares, credenciadas, a realização do aborto. Ou seja, os seus próprios médicos, concursados, do sistema público de saúde, não eram os profissionais que realizavam a interrupção da gravidez. Hoje a lei mudou e isso também está mudando. Enfim, naquele momento, eu poderia ter ido diretamente numa dessas clinicas como inclusive me recomendou meu marido. Mas eu tinha uma sensação de que, ainda legalizado, o Estado lavava as mãos, não botava a mão na massa mesmo, sabe?
E eu quis fazer o caminho que eu considerava o regular, ou seja, ir na minha médica do sistema público para que ela me informasse, o que, no fundo, era uma forma de interpelar o Estado. Era o que eu queria. E foi bastante surpreendente.
Por quê?
Porque minha médica ficou chocada com o fato de eu estar grávida e querer interromper a gravidez. Ela ficou meio brava e começou a pedir que eu explicasse por que que eu queria fazer isso. Que as coisas não eram assim, eu não poderia chegar lá dizendo que queria abortar. Eu, muito sensível - nesse momento eu ainda nem estava totalmente segura do que eu ia fazer, mas quis começar o processo, porque nesse caso o tempo não corre a nosso favor - eu comecei a chorar, muito, e a me explicar.
Aí ela foi entendendo e até concordando comigo, parecia. Como se ela fosse me autorizando. Olha que loucura! E no final eu disse: mas eu não tenho que explicar nada, porque até a semana 14 de gravidez eu posso interromper sem qualquer justificativa. Ela ficou sem resposta, se palavras.
E uma médica jovem, residente, que estava do lado dela disse: é verdade, por lei ela não tem que se justificar. Mesmo assim, em vez de me mandar para a clínica diretamente, ela me mandou fazer um exame de urina - que faz constar no meu histórico médico para sempre essa gravidez. A lei garante que depois de 5 anos o aborto não vai constar na sua ficha, ou seja, os documentos da clinica privada desaparecem como forma de garantir uma segurança de anonimato para as mulheres que abortam, outra loucura.
Ela, portanto, me mandou para uma consulta com a assistente social, para quem, já mais empoderada, eu fiz uma queixa da médica.
O fato de você ser também estrangeira de alguma forma também pesou no tratamento que você recebeu?
Acho que sim, porque ela dizia: "Não sei como é no Brasil, mas aqui isso não é assim não. Você não pode vir aqui e dizer que quer abortar assim, sem se explicar." Ela se referia ao Brasil com certo desdém, como quem acha que tudo no Brasil é mais livre, no mal sentido, mais bagunçado, mais selvagem mesmo. Inclusive isso está refletivo no livro. Porque eu cheguei em casa e pensei: "quem essa médica acha que é? Por que ela acha que conhece e pode falar do Brasil? No Brasil o aborto é crime e com pena de prisão."
E eu acabei vendo a importância de que estivesse no livro, de certa forma, essas duas formas com que a lei de cada país contempla e se refere ao aborto.
E quais são essas duas formas, exatamente?
Na Espanha existe uma "lei de saúde sexual e reprodutiva e da interrupção voluntaria da gravidez. "E ela não se refere só ao aborto, é uma série de medidas referentes a saúde sexual da mulher, que vão desde estabelecer a importância da educação sexual nas escolas até regular a possibilidade de ter licenças no trabalho quando se tem uma menstruação incapacitante, por exemplo. São um conjunto de medidas, que incluem a interrupção voluntaria da gravidez, que estão pensadas em conjunto e que tem como objetivo principal a saúde sexual da mulher e seu poder de decisão sobre seu próprio corpo.
No Brasil, o aborto só está contemplado no código penal. E esse é o grande problema. A política criminal se confunde com a política de saúde no nosso país, que com relação à saúde sexual da mulher é, praticamente, inexistente. E muito urgente.
De fato, no Brasil o aborto é ilegal em quase todas as circunstancias. Quando você passava por esse processo na Espanha o que te vinha a mente quando pensava que se estivesse no seu país você não poderia estar fazendo nada daquilo?
Pensava nas mulheres que tem que passar por isso sem ter o mínimo de segurança, de integridade física, e inclusive, moral. Porque não é um processo fácil. Se você, por um lado, precisa cuidar de não ser presa, e por outro lado, de não morrer numa clinica ilegal ou até mesmo em casa, você não pode cuidar de todos os aspectos e dificuldades subjetivas, emocionais, que também fazem parte desse processo.
No Brasil, dá a sensação de que as mulheres são tratadas como se fossem animais. Como se nossos corpos fossem só carne porque nem sequer falamos das emoções que estão implicadas nesse processo. As circunstâncias são tão duras que não nos permitem.
Apesar de o aborto ser legalizado na Espanha, você se sentiu culpada?
Eu senti muitas coisas, entre elas sim, culpa. Mas se sentir culpada para uma mulher está na ordem do dia. É um trabalho diário se livrar da culpa. Eu me impressionei muito com descobrir várias vozes que não eram minhas, ou que eu não sabia que eram minhas, e que estavam dentro mim.
Eu sempre fui a favor da legalização do aborto e sempre fui ateia. E de repente, ainda assim, eu tinha que lidar com discursos, medos e culpas que estavam em mim de uma forma muito mais profunda do que eu jamais poderia imaginar, e que estavam associadas a ideias religiosas. Foi aí que entendi qual o sentido de, além de escrever sobre meu aborto, publicar esse escrito.
Eu entendi que, na verdade, meu aborto não era meu, meu útero não era meu, meu corpo não era meu, já que dizia respeito a esse outro que me julgava, que me culpava, e também ao Estado que legislava sobre ele.
O que representou escrever sobre isso?
A escritura e publicação foi uma espécie de resgate do meu corpo para mim. E decidir abortar, num prazo de tempo bem curto, foi também o resultado de um processo de dialogo interno com essas vozes, de entendimento do meu desejo, meu desejo real, depois de desembaraçar esses discursos que me invadiam sem eu querer.
Elas estão lá no livro. Assim como meu desejo, que vai abrindo espaço nessa narrativa poética a medida em que ele vai calando essas outras vozes. E por isso é tão importante a gente poder falar sobre isso. Para se apropriar do discurso sobre nossos abortos e para transformar esses discursos.
Deveríamos fazer uma espécie de me too do aborto, começando por nós as mulheres que tem o privilégio de ter feito um aborto legal, sem infligir a lei, e que por isso podemos falar sem medo.
Porque o que se diz sobre ele são fabulações do patriarcado os das religiões, não são nossas histórias reais. E é sobre elas, sobre nossas histórias reais, que se deve legislar. O aborto precisa passar a ser outra coisa, inclusive para nós mulheres, e para isso precisamos nos apropriar da narrativa sobre ele.
Diante de tudo o que você viveu, dá mesmo para dizer que num país que legalizou o aborto, o aborto é legítimo?
Sim, o aborto é legítimo. Inclusive nos países que não legalizaram o aborto ainda. É uma questão de tempo. E ele continua sendo legítimo. Outra coisa é a forma como vamos encontrando de lidar com as opiniões alheias, com as leis e com as crenças religiosas que se impõe a nós e que não são nossas e que deveriam estar totalmente fora da discussão.
Se fala muito em respeito às religiões, mas quantas vezes eu e muitas mulheres e muitas pessoas são desrespeitadas pelas religiões?
Já fui a varias reuniões na ONU que debatem a autonomia ao corpo da mulher. Mas eu nunca fui a uma reunião que debate a autonomia do corpo do homem. O corpo da mulher é político?
Claro. A Silvia Federici explica muito bem isso. O corpo da mulher é um território de disputa de poder. Na verdade, é um território conquistado pelo capitalismo e pelo patriarcado. A regulação do aborto pelo Estado é um reflexo disso. Nossos corpos servem para produzir a força de trabalho que serve ao capital e, portanto, não somos livres de decidir sobre ele. E é bastante impactante quando você tem uma experiência real, mais além do conhecimento intelectual, de como isso se dá. E nossa luta... não é luta, porque parece que estou me referindo a ir para as ruas com bandeiras e tal, e não é isso. Mas nossa vida, nossa história, em si mesma, é sempre uma história, em maior ou menor medida, de tentativa de recuperar o poder sobre nossos próprios corpos.
Olha, você acompanhou o caso da Jennifer Hermoso quando ganhou a copa de futebol, né? O beijo na boca forçado do Rubiales, o presidente da Federação de Futebol Espanhola. Aqui na Espanha e no mundo, passamos mais de um mês até que ele, finalmente, pedisse demissão.
O que foi dito na Espanha sobre isso?
"Que exagero! Que besteira! O cara vai perder o emprego por causa disso, depois de ganhar a copa. Estão estragando a festa." Mais de um mês e de muita pressão, para que o cara e metade do mundo entendesse ou aceitasse que a boca de uma jogadora de futebol não pertence ao presidente da Federação. Um pouco depois desse caso, numa assembleia na prefeitura de Madrid, um deputado tocou a cara do prefeito, assim, deu tapinha no rosto do prefeito, num gesto meio sarcástico.
Meia hora depois, o presidente da assembleia tinha expulsado esse deputado da arena e no fim do dia, ele tinha se demitido. Por quê? Porque o corpo do homem é do homem, não há duvida. E o da mulher também. Muitos pensam.
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