Jamil Chade

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Reportagem

Ação internacional ajudou a asfixiar golpistas de 8/1 e blindar democracia

Em julho de 2022, uma reunião entre os chefes da pasta de Defesa do Brasil e dos EUA sinalizou aos militares em Brasília que eles não teriam o respaldo de Washington, caso optassem por uma aventura golpista.

De um lado da mesa estavam Laura Jane Richardson, general quatro estrelas do Exército dos EUA e comandante do Comando Sul, e Lloyd Austin, secretário de Defesa norte-americano.

De outro, o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, ministro da Defesa do Brasil e ex-comandante do Exército brasileiro.

Fontes que estiveram naquela sala relembram como o tom usado pelos americanos foi claro: as instituições democráticas brasileiras eram sólidas. Ou seja, não haveria qualquer tipo de apoio a uma ofensiva por parte dos militares brasileiros em relação ao questionamento contra a democracia no país.

O recado sutil foi entendido por todos que estavam naquele local. Dias antes, o então presidente Jair Bolsonaro havia usado um encontro com embaixadores estrangeiros em Brasília para atacar as urnas eletrônicas e questionar o processo eleitoral no Brasil.

Naquele momento, o governo recebia uma série de visitas do mais alto escalão do governo americano, incluindo o chefe da CIA (agência de inteligência dos EUA) e a cúpula da Segurança Nacional.

Um ano depois dos atos de 8 de janeiro, diplomatas admitem que a pressão discreta por parte dos EUA ajudou a mandar um recado aos militares brasileiros de que um processo golpista não encontraria respaldo pelo mundo. Pesou ainda uma carta de senadores americanos pedindo que o presidente Joe Biden suspendesse qualquer acordo militar com o Brasil, caso uma ruptura institucional ocorresse.

O recado era simples: um golpe poderia até ocorrer. Mas o dia seguinte do novo regime traria custos elevados para aqueles no poder.

Sem o apoio de membros da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), restaria ao eventual novo governo golpista apenas alianças com párias internacionais e regimes isolados dispostos a usar o Brasil para fortalecer posições contra os EUA.

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Articulação partiu do Brasil

Se a ação americana deu resultados, a iniciativa não ocorreu por acaso e nem se limitou aos EUA. Desde 2021, forças políticas nacionais, ministros do STF, grupos de ativistas, embaixadores e entidades de direitos humanos começaram a identificar que o cenário de um eventual golpe poderia ocorrer no Brasil, repetindo a invasão do Capitólio nos EUA ou criando dificuldades e instabilidade para o novo governo.

A ofensiva brasileira tinha como objetivo criar uma situação na qual o custo de um golpe fosse insuportável aos seus apoiadores, desde militares aos operadores do sistema financeiro. Para isso, precisavam que o mundo impusesse esse custo.

Em sigilo, conversas começaram a ser realizadas para alertar países de que era necessário uma reação para ajudar a blindar a democracia brasileira. A estratégia contou com vários atores, de diversos Poderes.

Um deles foi o uso deliberado do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e uma ofensiva para convencer embaixadas estrangeiras em Brasília de que as urnas eram confiáveis e que o sistema era sólido.

Ainda em 2022, uma visita organizada pelo Judiciário aos delegados de vários países causou uma profunda irritação em Bolsonaro, já que desmentia a própria narrativa do presidente.

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A conscientização dos ministros das cortes supremas no Brasil havia começado, de fato, muito antes. Dias Toffoli teve um encontro que deixaria claro o fato de que a comunidade internacional entendia que, depois do Capitólio, o país era a "bola da vez". Em 2021, o então ministro espanhol e sociólogo Manuel Castells reconheceu o papel que o STF estava desempenhando na luta contra a desinformação. "Eu admiro quem evita ditaduras", teria dito o espanhol, considerado como uma das maiores referências no estudo das redes sociais e da própria internet, desde os anos 1990.

Em Washington e em capitais europeias, grupos de ativistas brasileiros foram recebidos por governos, deputados e autoridades, justamente para tratar da ameaça que a eleição no final daquele ano representava.

Embaixadores aposentados e dissidências dentro do Itamaraty também agiram para fazer soar o alerta em diversas capitais pelo mundo. "O recado era de que existia uma chance real de que o governo Bolsonaro repetiria o comportamento de Trump e não aceitaria o resultado da eleição", relembra um embaixador brasileiro, na condição de anonimato. O ex-presidente sempre negou qualquer participação em uma tentativa de golpe de Estado.

Nos EUA, o embaixador Thomas Shannon também foi um importante interlocutor entre o gabinete de Joe Biden e aqueles que alertaram para o risco de um golpe.

Bolsonaro tentaria revidar, organizando uma reunião com embaixadores estrangeiros para criticar o sistema eleitoral nacional. Com várias das delegações já alertadas, o encontro foi um fracasso e, meses depois, gerou a inelegibilidade do ex-presidente.

O reforço da blindagem internacional viria ainda na ampliação de observadores internacionais, algo que Bolsonaro tentou bloquear. O TSE, porém, se apressou para fechar acordos e garantir a presença estrangeira durante a eleição.

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1º ato: a eleição

O primeiro teste desta articulação seria a eleição. Durante a apuração, no segundo turno, embaixadas estrangeiras enviaram mensagens de apoio ao processo eleitoral e de confiança em relação às urnas.

Imediatamente após o anúncio dos resultados, governos se apressaram em felicitar Lula. Ali, o que estava em jogo não era o candidato do PT. Mas a capacidade de que, nas urnas, a extrema-direita fosse derrotada.

"Naquela noite, o mundo olhava para o Brasil como se a democracia estivesse em jogo em nossas próprias casas", afirmou um diplomata francês. A tese era a de que se um país da dimensão do Brasil e com suas instituições fosse alvo de um ataque desestabilizador, outros poderiam ser incentivados a seguir o mesmo caminho.

"Todos queríamos saber até que ponto a extrema-direita mundial seria capaz de causar um terremoto", confessou outro diplomata.

Não por acaso, assim que o resultado do TSE foi divulgado, dezenas de governos emitiram comunicados comemorando e chancelando a vitória de Lula. Em menos de 48 horas, mais de cem países tinham reconhecido a derrota de Bolsonaro.

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2º ato: a posse

O segundo teste seria a posse de Lula. Uma vez mais, governos de todo o mundo enviaram seus representantes para Brasília. Não se tratava de uma chancela ao presidente Lula. Mas uma demonstração de força contra a extrema-direita e uma tentativa de blindar qualquer tipo de ação.

O resultado foi uma posse com mais de 70 delegações estrangeiras, um recorde.

Para serviços de inteligência de diversos governos, os sinais eram de que os mesmos modelos de atentados ocorridos e promovidos pela extrema direita americana poderiam se repetir no Brasil. A constatação era de que esse movimento é globalizado e que, portanto, os golpistas no país teriam "inspiração" e orientação do exterior.

3º ato: a tentativa de golpe

Com Lula no poder, houve um sentimento de que o pior já tinha passado. De fato, a sensação de alívio começou a ganhar forma a partir do dia 19 de dezembro de 2022. Num jantar supostamente de despedida de Bolsonaro do poder, diversos atores convenceram o então presidente de que seria uma boa ideia uma ida sua ao exterior.

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O que poucos previam era que, mesmo longe, ele continuaria a operar. Assim, quando a tentativa de golpe ocorreu, em 8 de janeiro, as cenas que rapidamente ganharam o mundo acenderam um alerta internacional em relação à extrema direita e a necessidade de vigilância permanente. Líderes se apressaram para deslegitimar um golpe no Brasil, enquanto membros do governo passaram a ser alvos de telefones e demonstrações de apoio.

Numa manobra coordenada, EUA, Europa e América Latina blindaram Lula e a democracia brasileira, insistindo que não haveria qualquer chancela a uma ameaça de ruptura.

A necessidade de uma reação ficou ainda mais clara quando, nos serviços de inteligência, foi identificada a "comemoração" que ocorria nos principais canais da extrema direita no mundo. Não faltaram comentários de Steve Bannon, articulador americano, e de outros nomes.

O chanceler Mauro Vieira passou a receber telefonemas de apoio por parte de ministros de Portugal, Espanha, Uruguai e outros governos. Os EUA, país que viveu cenas similares em 2021, também se manifestaram em apoio ao Brasil, imediatamente.

O presidente Joe Biden chamou os ataques de "ultrajantes". "Condenamos os ataques contra a presidência, Congresso e Corte Suprema do Brasil hoje", afirmou Antony Blinken, secretário de Estado norte-americano. "Usar violência contra instituições democráticas é sempre inaceitável", disse. "Nos aliamos ao presidente Lula para pedir um fim imediato a essas ações", declarou.

Assessores de Biden afirmaram que a democracia no Brasil era "inabalável".

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Bernie Sanders, senador americano, destacou que foram atos como o de 8 de janeiro que levaram o Congresso americano a aprovar uma resolução na qual os EUA teriam de suspender qualquer cooperação com o Brasil caso um golpe ocorresse. "Estamos ao lado do governo democraticamente eleito e condenamos a violência autoritária", disse.

"A violência não tem lugar nenhum numa democracia. Condenamos fortemente os ataques às instituições dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário em Brasília, que é um ataque também à democracia. Não existe justificativa para esses atos", escreveu a embaixada americana em Brasília.

"Invasões por indivíduos que não aceitam um resultado eleitoral violam a democracia de um país. Exortamos o fim imediato desses ataques", afirmaram as representações americanas no Brasil.

Jamie Raskin, deputado que investiga os atos de 6 de janeiro de 2021 contra o Capitólio, afirmou que "as democracias do mundo precisam agir rapidamente para deixar claro que não haverá apoio" aos criminosos de direita. Chamando os golpistas de "fascistas", ele destacou que os criminosos repetiram a receita de Donald Trump e que precisariam terminar na "prisão".

Coordenada, a reação também veio da Europa. Pedro Sanchez, presidente do governo da Espanha, emitiu um comunicado no qual declarou "todo o apoio ao presidente Lula e às instituições livre e democraticamente eleitas pelo povo brasileiro". "Condenamos rotundamente o ataque contra o Congresso do Brasil e pedimos um retorno imediato à normalidade democrática", completou.

Josep Borell, chefe da diplomacia da Europa, condenou os atos em Brasília por parte de "extremistas violentos". "Apoio total ao Lula e seu governo, ao Congresso e à Suprema Corte Federal", disse. "A democracia brasileira irá prevalecer sobre a violência e extremismo", disse.

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Emmanuel Macron, presidente da França, também se manifestou em apoio à democracia brasileira e disse que Lula poderia contar com o apoio "incondicional" de seu país.

Nem na Itália, governada pela extrema direita e simpática à família Bolsonaro, os atos foram aplaudidos. Antonio Tajani, chanceler italiano, condenou com "firmeza" e insistiu que os resultados eleitorais deveriam ser respeitados.

O governo português ainda "condenou as ações de violência e desordem que tiveram lugar em Brasília, reiterando o seu apoio inequívoco às autoridades brasileiras na reposição da ordem e da legalidade". Suíça, Irlanda, Islândia, Noruega, Reino Unido, Malta, Bélgica, Áustria, Eslovênia e Letônia também reagiram em apoio à democracia brasileira.

Era importante deixar claro que os golpistas não teriam respaldo regional. Na América Latina, a CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) manifestou seu apoio ao governo Lula. Alberto Fernandez, então presidente da Argentina, falou em "tentativa de golpe". Em Quito, o governo do Equador "condenou os acontecimentos" no Brasil e reiterou seu "apoio irrestrito à democracia e ao governo legitimamente eleito". Gustavo Petro, presidente da Colômbia, também sinalizou na mesma direção. "O fascismo decide dar um golpe", afirmou.

Ao longo das semanas seguintes, o tema permearia as primeiras viagens internacionais de Lula, com a tentativa de golpe sendo tratada como um sinal de que haveria a necessidade de ações internacionais para lidar com as plataformas digitais e a defesa da democracia.

Em passagem por EUA, Espanha, Argentina, ou com o chanceler alemão, Olaf Scholz, ficou evidenciada na agenda bilateral de Lula que o tema não desapareceria.

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"Era a prova de que a vigilância internacional teria de ser permanente. Que não haveria como pensar que uma vitória nas urnas bastava. Era a comprovação a todos que a ameaça estava sempre à espreita", afirmou um embaixador brasileiro que acompanhou várias dessas viagens.

Brasil agiu para não dar sinais de que caos dominava

Se o apoio internacional foi considerado como importante, o governo brasileiro agiu no sentido de convencer os líderes estrangeiros que a democracia estava preservada e que a resposta seria doméstica.

A mensagem de que o Brasil tinha seus mecanismos para lidar com a crise passou a ser o tom usado por Mauro Vieira, chanceler brasileiro, em seus contatos no exterior. A diplomacia também foi orientada neste sentido, impedindo que o tema entrasse na agenda internacional como um sinal da fragilidade das instituições brasileiras.

Um dos principais exemplos dessa manobra do Brasil foi a tentativa da Colômbia de pedir uma reunião urgente da OEA (Organização dos Estados Americanos) e acionar a Carta Democrática. Na prática, qualquer ruptura institucional no país poderia levar o país a ser expulso da OEA. Horas depois dos ataques em Brasília, o governo do Chile começou a consultar capitais da região para convocar um encontro de emergência da OEA.

Mas o governo Lula esvaziou a reunião de emergência da OEA. O gesto foi interpretado pelos vizinhos como um esforço para sinalizar que a democracia era sólida.

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A proposta de alguns países latino-americanos era para que uma resolução fosse aprovada nos organismos internacionais em apoio ao Estado de Direito no Brasil.

Contudo, depois de consultas nos bastidores, diplomatas brasileiros informaram aos seus homólogos na região a posição do Itamaraty: o Brasil aceitaria a reunião, mas não em nível ministerial. O acordo foi de que apenas havia uma reunião dos embaixadores de cada país, o que na prática significaria uma redução da ambição política do encontro.

A segunda condição era a de que não houvesse uma resolução para ser votada. O governo brasileiro tem tradicionalmente lutado contra decisões que foquem em apenas um país e, no caso do 8/1, uma resolução poderia colocar a situação nacional numa espécie de monitoramento internacional.

O acordo entre os governos foi de que o encontro serviria para que cada delegação fizesse um discurso de apoio ao Brasil. O Itamaraty, por sua vez, usaria a ocasião para atualizar os vizinhos sobre as medidas tomadas pela Justiça do país para investigar e processar os autores dos crimes.

Ao abafar uma reação internacional mais forte, o Brasil buscava:

Não dar ainda mais protagonismo aos golpistas;

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Manter seu status de democracia consolidada.

Neste segundo ponto, não interessava ao Brasil demonstrar fragilidade. Depois de quatro anos de uma política externa criticada, Lula assumiu com a promessa de reconstrução da credibilidade do país no cenário internacional e a volta da capacidade de ser um protagonista.

Para isso, deveria evitar que o clima fosse de desconfiança sobre a solidez de suas instituições e de que o governo estaria ameaçado.

Na ONU, a mesma postura também foi identificada. O secretário-geral das Nações Unidas, Antonio Guterres, foi um dos a destacar a "plena confiança" na capacidade das instituições nacionais de dar as respostas devidas, enquanto sua instituição solicitava que a Justiça brasileira não optasse por anistias e que julgamentos fossem realizados.

Aos líderes estrangeiros, o Itamaraty também sinalizou na mesma direção ao ser procurado com ofertas de ajuda.

"Aquelas cenas nos causaram arrepios", admitiu o comissário da ONU para Direitos Humanos, Volker Turk.

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O que diz Bolsonaro

Em entrevista à CNN ontem, durante suas férias em Angra dos Reis (RJ), Jair Bolsonaro voltou a lamentar as depredações à sede dos Três Poderes, em Brasília, e atribuiu a uma suposta "armadilha por parte da esquerda", mas sem apresentar provas.

"Infelizmente, não foi para frente a investigação. Nem o próprio general G. Dias fez parte do corpo final da CPMI. Então, a CPMI não serviu para absolutamente quase nada. Lamentável. Não é do pessoal que nos segue, que nos acompanha, pessoal bolsonarista, pessoas de direita, pessoal conservador nunca foi de fazer isso aí", declarou à CNN, citando o general Gonçalves Dias, ex-chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional) do governo Lula e a CPI do 8 de janeiro.

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