Jamil Chade

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Reportagem

'O que mais falta em Cuba é esperança', diz escritor Leonardo Padura

Leonardo Padura não esconde: o que falta em Cuba hoje não é apenas o acesso a bens materiais. A escassez é de esperança.

O escritor recebeu o UOL em sua casa, no bairro de Mantilla, em Havana. Entre um café e outro, falou de literatura, de seu último livro, "Pessoas Decentes", e deu pistas sobre sua próxima obra. Mas não hesitou em descrever a atual situação de Cuba, que vive uma crise econômica que deixou o país de joelhos.

"Neste momento, falta combustível em Cuba, falta alimento, falta remédio. Mas o que mais falta é a esperança. E uma sociedade sem esperança é uma sociedade que tem um grande problema de funcionamento", disse o escritor que é, hoje, o maior nome da literatura cubana no mundo.

Segundo ele, o que ainda mantém o regime é o sistema de controle implementado pelas autoridades de Havana. Ele alerta que o que se vê na imprensa oficial cubana não corresponde à realidade.

A verdade é relativa. Podemos ver o mesmo acontecimento de maneiras diferentes e cada um ter sua verdade. Mas a mentira é absoluta. E, em meus livros, você não vai encontrar nenhuma mentira sobre a realidade cubana.

Apesar do sucesso no exterior, ele sabe que seu nome circula mais fora de Cuba do que em seu próprio país por questões políticas. Mesmo assim, decidiu que continuará vivendo na ilha. O motivo: precisa estar onde tem amigos.

Eis os principais trechos da entrevista:

Chade - Em seu último livro, você situa parte do enredo nos anos de Obama, quando havia uma esperança de que dias melhores poderiam chegar para Cuba. O que ficou desse momento da história?

Padura - As relações de Cuba com os EUA sempre foram relações traumáticas. Desde o século 19, começa a existir um sentimento nacional em Cuba e os EUA começam a ser uma potência econômica. Sempre houve a intenção, por parte dos EUA, de ter um pé, ou os dois pés, sobre Cuba. E isso provocou muitas reações ao longo da história.

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Há um pensador cubano da metade do século 19 que, quando começa a guerra de independência, ele se opõe à luta armada contra a Espanha. E afirma que é um erro. Ele defendia que houvesse um acerto com a Espanha, que os direitos que Cuba necessitava fossem dados para que as coisas funcionassem melhor. Naquele momento, era o território mais rico da Espanha. Ele dizia que preferia que falássemos castelhano e não inglês. Ele sabia o perigo que poderia ser a independência. Foi muito criticado. Com 30 anos de distância, ele via o que ocorreria com Cuba.

A independência se frustrou pela intervenção militar dos EUA, em 1898. A guerra contra a Espanha estava em um impasse. Cuba não conseguia ganhar. Mas a Espanha estava derrotada. E vem a intervenção militar americana. Neste contexto é que eu situo a primeira parte desse livro, entre 1909 e 1910.

O que ocorre em Cuba a partir dessas intervenções americanas?

Elas provocam no país uma grande frustração do sentimento nacional. Mas, ao mesmo tempo, traz grandes investimentos em infraestrutura e a modernização do país. Se querem um neocolonialismo, precisam que as coisas funcionam. Então, constroem edifícios, estradas, o Malecon em Havana. Chegam os automóveis e a cidade se moderniza.

E na segunda parte do livro você entra nos anos de Obama...

De fato, em minha obra anterior, a "Transparência do Tempo", a história termina em outubro de 2014. E há um pequeno epílogo no qual o personagem Mario Conde, em 17 de dezembro de 2014, acorda pela manhã com a sensação de que há algo que está prestes a ocorrer. E assim termina a história.

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Imagem registrada em fevereiro deste ano em Havana, com a bandeira cubana
Imagem registrada em fevereiro deste ano em Havana, com a bandeira cubana Imagem: Jamil Chade/UOL

E o que ocorre em 17 de dezembro de 2014?

Ao meio-dia, os presidentes Barack Obama e Raul Castro anunciam que os países começam a conversar para restabelecer relações. Isso foi tão comovedor. Para completar, ocorre num dia muito especial para Cuba. Trata-se do dia de São Lázaro. Um santo que, em Cuba, tem muitos devotos. Foi a única procissão que foi mantida, até na época em que qualquer religião em Cuba estava marginalizada. É um santo milagreiro.

Quando a notícia é publicada, vou ver minha mãe, que tinha 86 anos na época. E eu digo: "Você viu a notícia?" E ela responde: "Isso é um milagre de São Lázaro". Não se imaginava que Cuba e EUA poderiam ter uma relação melhor.

Como foram os passos seguintes?

As negociações começam, a relação é estabelecida em 2015, a bandeira cubana é hasteada em Washington, e começa a ocorrer toda uma mobilidade social. E que provocou uma movimentação econômica. Os EUA não têm autorização para viajar para Cuba. Mas se abrem licenças de vários tipos. Encontros religiosos, gastronômicos, esportivos, caçador de borboleta, qualquer coisa. E Havana lotou de americanos. Isso permitiu que as pessoas pudessem abrir mais negócios, restaurantes.

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Aqueles que tinham carros americanos antigos cortavam o teto para que se transformassem em veículos conversíveis de passeio aos turistas. O dinheiro se movimentava. Tudo isso chega a um momento de esplendor em 2016.

De que forma?

Em primeiro lugar, Obama visita Cuba. Mas também o show dos Rolling Stones, o desfile da Channel, Fast and Furious filmam parte de filme, Madonna vem celebrar seu aniversários, as Kardashians e Rihanna fazem uma visita. Todos estavam em Havana. Havia a esperança de que houvesse uma melhor relação com os EUA. Pensávamos que Hillary Clinton seria eleita presidente e iria desmontar o embargo.

Naquele momento, só a American Airlines tinha dez voos diários entre Cuba e EUA. Os cubanos chegavam a passar o fim de semana em Miami e voltavam na segunda-feira cedo para trabalhar.

20.mar.2016 - Presidente dos EUA, Barack Obama, a primeira-dama Michelle e as filhas Sasha e Malia fizeram um passeio guiado por Havana Velha. Foi a primeira visita de um presidente americano ao país em 88 anos
20.mar.2016 - Presidente dos EUA, Barack Obama, a primeira-dama Michelle e as filhas Sasha e Malia fizeram um passeio guiado por Havana Velha. Foi a primeira visita de um presidente americano ao país em 88 anos Imagem: Carlos Barria/Reuters

E o que ocorreu?

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No dia 4 de novembro de 2016, Trump vence as eleições. Ficamos assombrados. O caráter fundamental de Trump foi desmontar as políticas de Obama. E nesse contexto entrou Cuba. Já em janeiro de 2017 as coisas começam a ficar complicadas. Publico no jornal The New York Times um artigo em que aponto como alguns cubanos transformaram seus carros para receber os turistas e peço a Deus para que Trump não acabe com seus negócios.

E Trump acaba com esses negócios. Os americanos deixam de viajar para Cuba, o dinheiro deixa de circular e medidas são adotadas contra o governo cubano. E, logo depois, chega a pandemia. São dois elementos que se unem e que provocam a situação que estamos vivendo ainda hoje.

Ou seja, uma relação muito limitada com os EUA. Biden não mudou as políticas de Trump e a pandemia promoveu uma paralisia do turismo. A tudo isso se somam as más políticas aplicadas pelo governo cubano,

Uma delas foi a unificação monetária. Isso provocou uma enorme inflação e um empobrecimento do trabalhador. A pessoa que ganha um salário do Estado não consegue ter uma renda para poder viver. Já não podiam antes. E agora podem muito menos.

Quais foram as respostas da sociedade diante desse cenário?

Foram várias. Mas uma delas foi especialmente dramática. Nos últimos dois anos, entraram nos EUA mais de 600 mil cubanos. E isso num país com 11 milhões de pessoas. É uma enorme quantidade de pessoas.

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São jovens?

A maioria sim. Mas também saíram adultos. Em um outro livro meu, "Como Polvo en el Viento", falo dessa tragédia cubana da migração. Numa crônica, falo de três amigos meus que deixaram o país em apenas um mês. E vai deixando a sensação de que estou ficando sozinho. Pessoas de quase 70 anos. Uma ao Peru, outra aos EUA e outra para Espanha.

Um país muito diferente daquele de 2016, portanto?

Hoje, as pessoas vão para a Nicarágua e, de lá, caminham até chegar aos EUA. As pessoas estão vendendo tudo, ao preço que seja, para ir embora. Portanto, a diferença entre as pessoas que iam passar o fim de semana em Miami e as pessoas que hoje saem do país demonstra que estamos falando de dois países totalmente diferentes, em apenas dez anos.

Carece algo que é muito essencial numa sociedade, que é a esperança. Neste momento, falta combustível em Cuba, falta alimento, falta remédio. Mas o que mais falta é a esperança.

E uma sociedade sem esperança é uma sociedade que tem um grande problema de funcionamento.

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Sem essa esperança, como vê a possibilidade de um modelo cubano ser mantido?

O modelo tem um mecanismo que funciona, que é o controle. Há dois anos, tivemos muitas manifestações. As pessoas foram às ruas. Mas quem quebrou um vidro numa loja foi condenado a dez anos de prisão. Portanto, hoje, ninguém se atreve a fazer uma manifestação.

Aviso de que não há leite em estabelecimento em Havana
Aviso de que não há leite em estabelecimento em Havana Imagem: Juliana Monteiro/Arquivo pessoal

Vieram políticos europeus, enviados do papa, todos pedindo que essas pessoas sejam liberadas. E o governo cubano rejeita. E isso faz com que a estrutura política do país continue funcionando. Mas o que não funciona é a estrutura econômica.

Muitas pequenas privadas foram criadas, uma alternativa que permitiu que muitas pessoas pudessem comer. Pelas vias de distribuição do Estado, não há alimentos.

Não acredito numa derrubada da estrutura do Estado cubano. Mas o que existe é um esgotamento de todo um sistema de vida do país.

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Antes, a diferença entre os que viviam um pouco melhor e os que viviam um pouco pior era pequena. Vivíamos dignamente. Hoje, isso desapareceu. Há uma enorme quantidade de pessoas com escassas possibilidades econômicas e um setor, de 10%, que tem outras possibilidades. E ainda temos um segmento da sociedade que é parasita.

Quem são eles?

Aqueles que vivem do envio de dinheiro do exterior. Em Cuba, um médico ganha hoje US$ 37 por mês. Se eu recebo US$ 100 por mês do meu irmão que mora nos EUA, ganho três vezes mais do que esse médico. É menos do que se cobra em Miami para ver o Messi jogar.

Portanto, é uma sociedade economicamente, socialmente e politicamente distópica. Quando assisto às notícias na TV cubana, falam de um país virtual. Um país onde tudo está resolvido ou onde as coisas vão ser resolvidas.

São 65 anos da revolução. Tua geração viveu esse momento histórico. Para onde foi tudo isso?

Em termos econômicos, [a revolução] foi um ativo. Mas de onde se tirava e não era reposto. E acabou. Minha geração foi universitária, trabalhou, foi para Angola na guerra — como eu. Atravessamos o "período especial", depois do fim da União Soviética, que foi duríssimo. Passamos por tudo isso. E, cada vez mais, esse ativo vai terminando.

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Por isso, hoje, temos pessoas que se aposentam e deixam Cuba. Preferem viver com seus filhos, em qualquer parte do mundo.

De que forma teus livros dialogam com os diferentes momentos de Cuba?

No início não me dei conta. Mas acho que, ao longo dos anos, estive escrevendo uma crônica íntima da vida cubana contemporânea. Há um elemento muito importante na hora de escrever um livro, que é uma pergunta que eu sempre me faço: para que vou escrever? A pergunta não é como vou escrever. Mas para quê?

A intenção corresponde a uma necessidade estética. Mas também a um compromisso cidadão. Eu tenho a possibilidade da palavra. E não usa-la é negar uma possibilidade de reflexão a todos, desde dentro.

Sou uma pessoa de Cuba, vivo em Cuba, escrevo sobre Cuba, escrevo em cubano. Pertenço a essa cultura. Nunca poderei ser outra coisa. Por meio da literatura, faço essa reflexão de uma realidade que vai evoluindo. Por existir um modelo de um partido único, há a percepção que a sociedade cubana não muda. Mas muda.

A única história que não se move é a que está nos livros. E mesmo essa muda, de acordo com os estudos que vão sendo realizados e a abertura de arquivos dos estados.

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A sociedade antes e depois do celular não é a mesma. Em Cuba, pelo afã de controle, se atrasou em anos a possibilidade de o povo ter um celular. Mas, quando chegou, o telefone mudou a sociedade cubana.

O que você tenta deixar escrito?

Um testemunho desde o meu ponto de vista. A verdade é relativa. O mesmo acontecimento podemos ver de maneiras diferentes e cada um ter sua verdade. Mas a mentira é absoluta. E, em meus livros, você não vai encontrar nenhuma mentira sobre a realidade cubana.

Talvez a verdade que eu diga possamos discutir. Mas você nunca vai poder me dizer que eu contei uma mentira. Por isso, com toda a dificuldade para que meus livros sejam publicados em Cuba e as limitações de projeção dentro da sociedade cubana, meu grande escudo é que eu nunca minto.

Padura posa em frente à sua casa no bairro rural de Mantilla, em Havana, em foto antiga
Padura posa em frente à sua casa no bairro rural de Mantilla, em Havana, em foto antiga Imagem: Adalberto Roque/AFP

O que é, portanto, a literatura em Cuba hoje?

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É um exercício que se pratica por fé. É uma seita de umas pessoas que ainda acreditam que é necessário escrever. A indústria editorial está praticamente paralisada. A promoção da literatura se faz com critérios políticos, e não culturais. A possibilidade de que as pessoas tenham acesso ao mercado editorial é cada vez menor.

À medida que o ativo [da revolução] foi sendo gasto, foi desgastando também o interesse mundial por Cuba. E isso afeta a literatura. Tive um elemento salvador. Estou escrevendo meu 15º livro. Trabalhei muito.

Você foi visitar Lula na prisão. Como foi isso?

Dilma Rousseff tinha lido meus livros e insistiu que ele lesse. Numa de minhas idas ao Brasil, ele ficou sabendo e pediu que minha editora me levasse até Curitiba. Foi uma conversa muito interessante. Saí dali pensando que o pior para ele foi o fato de que, numa prisão, ele estava afastado da vida política nacional. Mas o melhor que ocorreu com Lula foi que saiu dali sendo um homem mais sábio.

E como está seu próximo livro?

Acho que estou na primeira metade dele ainda. Tenho umas cem páginas escritas. Trata-se de um processo de dois anos. Ele acontece a partir de uma história real, de um filho que mata um pai. É uma família muito próxima a mim. Algo muito traumático. Vivi isso de perto. A partir disso, conto uma ficção de um grupo de pessoas da minha geração que se aposentam e descobrem que estão em um mundo no qual não podem viver. Materialmente não podem viver.

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E, no final, eles vão também para Miami?

Não te posso dizer. Simplesmente por não saber.

Você pensa em deixar Cuba?

Nunca pensei. Vou a lugares pelo mundo e penso que poderia viver ali. Mas, se eu for para algum lugar, precisa ser um lugar onde eu tenha meus amigos. A solidão é muito dolorida. Essa solidão é fatal. Eu não poderia resistir.

Aqui em Cuba, com todos os problemas, temos amigos. E, sobretudo, por me alimentar dessa realidade. O que sai da terra e me alimenta está aqui.

Para uma ala progressista, é difícil criticar Cuba, por tudo o que ela representa...

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É admitir uma derrota histórica. Mas o problema é que o sistema econômico do socialismo é uma criação de Stalin e um sistema econômico que não funciona. Funcionou na União Soviética sobre a depredação da natureza e sobre o trabalho semiescravo. É um sistema que não incentiva a qualidade, a concorrência, a produtividade.

É um pouco a tese do meu livro "O homem que amava os cães". A utopia foi se perdendo e ficou apenas a retórica. E há toda a experiência históricas das coisas que foram feitas em nome do socialismo. A revolução cultural na China, o Khmer Vermelho. Em Cuba, não chegamos a esses extremos. Mas existe a política de controle do indivíduo. E por isso escrevo "Hereges", para falar das necessidades do indivíduo.

Deus é o menos democrático que há. E mesmo assim nos deu o livre arbítrio. Deu a nós a possibilidade de errar. É necessário ter a possibilidade de errar.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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