Jamil Chade

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Reportagem

Cuba vive maior êxodo desde revolução

Na periferia de Havana, um cartaz gigante anuncia: "Aqui, nadie se rinde". Ou simplesmente: aqui, ninguém se rende. A propaganda do governo é ainda dos anos de Fidel Castro. Mas, segundo um morador da cidade, a placa ganhou uma nova pintura recentemente — como se a mensagem tivesse de ser reforçada.

A realidade, entretanto, não é coerente com a frase. Milhares de cubanos deixaram o país nos últimos dois anos, fugindo da pior crise vivida pelo país desde o colapso da União Soviética há três décadas. O bloqueio americano cruelmente intensificado, a pandemia de covid, uma gestão desastrosa, um furacão, a guerra na Ucrânia e considerações geopolíticas colocaram Cuba e seu modelo em uma encruzilhada.

Os números do governo de Washington apontam que 313 mil cubanos cruzaram as fronteiras dos EUA em 2022. As autoridades aduaneiras americanas ainda falam em 153 mil entradas de cubanos irregulares em 2023, além de outros 67 mil que foram aceitos nos EUA por meio do programa de imigração criado por Joe Biden chamado Parole.

Em apenas dois anos, portanto, pelo menos 533 mil cubanos deixaram a ilha apenas em direção aos EUA — cerca de 5% dos 11 milhões de cubanos. De cada dez deles, oito estão em idade de trabalho.

Se não bastasse, 37 mil cubanos pediram refúgio no México entre 2022 e 2023 e, com o passar do tempo, o ritmo ganha força. Em agosto de 2023, 6 mil cubanos chegaram à fronteira entre o México e os EUA. Em setembro, o número já era de 10 mil.

Ninguém sabe exatamente dizer a dimensão do êxodo, enquanto se especula entre diplomatas sul-americanos que o número seria ainda maior se forem somados os cubanos que buscam a Espanha ou a América Latina como destinos.

Mas mesmo os números oficiais do governo norte-americano já são superiores, em termos absolutos, às demais ondas de saída da ilha desde a revolução de 1959, por Fidel Castro.

  • Naquele momento e até 1962, 250 mil cubanos deixaram o país.
  • Nos anos 80, foram mais 130 mil.
  • Com a crise diante do colapso da ajuda de Moscou, nos anos 90, mais 30 mil deixaram o país.

Nada, porém, se compara ao que ocorre hoje. Para muitos cubanos, uma das rotas mais populares para emigrar é o voo para a Nicarágua, do aliado Daniel Ortega. Desde 2021, um cubano pode entrar como "turista" no país centro-americano. E, de lá, iniciam uma longa caminhada até a fronteira entre o México e os EUA.

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Para financiar o percurso de 3 mil quilômetros e os "coiotes" que fazem a travessia pelas fronteiras, os cubanos vendem suas casas por cinco mil dólares e mobilizam recursos da família, na esperança de escapar da escassez que toma conta do país.

O governo cubano não divulga números sobre isso.

Cubanos vendem tudo para deixar ilha, diz Padura

A situação de profunda crise que vive o país tem levado até mesmo os filhos de cubanos que dedicaram toda suas vidas ao governo a partirem para Miami.

"As pessoas estão vendendo tudo, ao preço que seja, para ir embora", diz o escritor Leonardo Padura, ao receber o UOL em sua casa.

Posto de combustível vazio em Cuba
Posto de combustível vazio em Cuba Imagem: Jamil Chade/UOL
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A realidade é que essa desesperança é baseada em fatos reais. Com a guerra na Ucrânia e a crise na Venezuela, Cuba deixou de contar com seus aliados em Moscou e Caracas no fornecimento de combustível. O resultado: frequentes apagões pelo país e o uso da energia para abastecer os hotéis com turistas estrangeiros.

Em outubro de 2023, por exemplo, o déficit de energia era equivalente a 20% do consumo nacional. Nos postos de gasolina, motoristas relatam filas de até 24 horas. E, mesmo assim, sem garantias de abastecimento.

A falta de combustível passou a ter até um impacto político. As grandes caravanas de todo o canto do país para marcar as principais datas da revolução, em Havana, passaram a ser reduzidas ou até canceladas.

Outro símbolo da crise tem sido a questão do acesso aos alimentos. 85% da comida consumida no país é importada. Em meados de 2023, o presidente do Parlamento cubano, Esteban Lazo, admitiu que praticamente 100% da cesta básica estava sendo importada.

A grande dependência passou a custar caro quando, nos mercados internacionais, o preço dos alimentos explodiu por conta da guerra na Ucrânia.

Placa indica falta de leite em estabelecimento cubano
Placa indica falta de leite em estabelecimento cubano Imagem: Juliana Monteiro/Arquivo pessoal
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O UOL visitou os centros de distribuição de alimentos subsidiados para a população. Mas encontrou prateleiras vazias e um racionamento medido grama a grama. No momento em que se completa 60 anos da "libreta" — que cada cubano conta para garantir o acesso à comida a um preço baixo —, mesmo os funcionários dos locais de distribuição são irônicos.

"Isso é Cuba", disse uma mulher enquanto explicava que seu centro não contava com leite que o estado deveria garantir para as crianças. Em outro centro, era dia de frango. Mas apenas 500 gramas de carne por pessoa por mês.

O restante das necessidades os cubanos precisam comprar nos mercados convencionais, hoje a preços proibitivos depois da explosão do custo de vida.

Fontes do próprio governo Lula em Brasília admitem que a crise de alimentos em Cuba hoje justificaria um pedido de ajuda humanitária. Mas decretar tal condição está descartado — já que insinuaria o fracasso do modelo.

Bloqueio americano intensificado

Nada se explica, porém, sem considerar que o bloqueio imposto pelos EUA foi ampliado e intensificado nos últimos anos.

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A esperança criada em 2016 com a visita de Barack Obama desapareceu, assim como os dólares dos turistas americanos. Naquele momento, Havana chegou a receber dez voos diários de cidades dos EUA.

Mas, durante a presidência de Donald Trump, não apenas as medidas contra Havana voltaram, como ainda foram reforçadas. No total, 243 medidas foram adotadas. Membros de uma igreja metodista americana chegaram a ser investigados por ajudar uma igreja cubana.

Em 2021, faltando nove dias para deixar o governo, Trump declarou Cuba como país que patrocina o terrorismo, criando ainda novos problemas para empresas de todo o mundo que desejassem vender para a ilha. No fundo, nada diferente da origem das medidas dos anos 60.

Naquele momento, num memorando interno do governo norte-americano, o objetivo do bloqueio era o de "desencantar e desiludir" a população por meio da privação econômica.

Bandeira cubana em janela em Havana
Bandeira cubana em janela em Havana Imagem: Jamil Chade/UOL

Mas, para a surpresa dos cubanos, a vitória de Biden em nada mudou a política americana para Cuba. Nos primeiros meses do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o presidente brasileiro tentou convencer a Casa Branca a rever o embargo com Havana.

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Fontes no Itamaraty confirmam que o gesto de Lula não é apenas um agrado aos históricos aliados latino-americanos. Brasília sabe que apenas com uma retomada da economia cubana é que o país conseguirá reaver o dinheiro que emprestou para Cuba — no valor de mais de US$ 670 milhões.

No entanto, com eleições dominando a lógica da política americana em 2024, qualquer chance de uma nova estratégia está descartada.

O bloqueio custou US$ 4,8 bilhões para a economia cubana apenas em 2023.

O turismo europeu, que chegava a levar para a ilha 500 mil pessoas por ano, despencou para pouco mais de 100 mil e, depois da covid-19, ainda não foi plenamente recuperado.

Esgotamento

Todos os números oficiais ainda mostram o profundo impacto na economia nacional.

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  • Em 2023, o PIB encolheu em 2%.
  • O estado está sem dinheiro e o déficit fiscal é de 18% do PIB.

O Observatório Cubano de Direitos Humanos apontou, em setembro de 2023, que 88% dos cubanos vivem com menos de 1,9 dólar por dia e que 48% já deixaram de comer em algum momento por falta de dinheiro.

A ilha vive uma dolarização virtual, descobre os primeiros sinais reais da desigualdade social e até a delinquência ganha terreno — todos fenômenos comuns em diversas capitais latino-americanas por décadas e que Havana havia conseguido, de certa forma, se blindar.

Insustentável, a crise teve de ser lidada pelo governo. A moeda passou por uma profunda desvalorização e os planos eram de uma reforma do Estado que seria um verdadeiro furacão sobre a ilha.

Mas poucas horas antes do anúncio oficial, no início de fevereiro, o governo comunicou que um vírus havia atacado os computadores dos ministérios e que, portanto, a reforma estava suspensa até que os "problemas técnicos" fosse resolvidos.

Dias depois, a cúpula econômica foi substituída. E a população ficou sem saber se as medidas seriam adotadas ou não.

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Prédios na capital cubana: crise ocorre num momento de transformação política
Prédios na capital cubana: crise ocorre num momento de transformação política Imagem: Jamil Chade/UOL

Para ex-funcionários do estado cubano, o paradoxo é que a crise ocorre num momento de transformação política. Nos últimos anos, a Constituição foi reformada e o presidente pode ficar no cargo por apenas dois mandatos.

Em 2021, o governo ainda reverteu políticas datadas dos anos 60 e permitiu que pequenas empresas fossem estabelecidas — 7 mil delas foram registradas.

Hoje, porém, o que impera é a incerteza e, acuado, o governo deu sinais de suspender o processo de ampliação das liberdades individuais.

Se o ativo revolucionário dos irmãos Castro e subsídios do exterior ajudaram, por décadas, a manter a esperança de que o modelo cubano poderia funcionar, a realidade atual explicita a necessidade de uma fadiga da utopia.

Sem uma nova liderança carismática, sem ajuda internacional e boicotado pelos diferentes governos americanos, não são poucos os indícios de um esgotamento de um modelo, justamente quando a revolução completa 65 anos.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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