Jamil Chade

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Reportagem

Escritora mais vendida do Brasil, Carla Madeira cruza fronteiras

Carla Madeira, a escritora de ficção mais vendida do Brasil em 2023, agora sai ao mundo. Suas obras estarão em breve no México, Portugal, Itália e na Rússia. E, nesta semana, ela participa do Salão do Livro de Genebra e de debate literário na cidade suíça.

Em entrevista ao UOL, a escritora mineira que arrebatou um amplo sucesso com "Tudo É Rio" fala de sua relação com a literatura, com as redes sociais, a censura e a desconstrução do modelo de sexualidade feminina.

A autora de "Véspera" e "A Natureza da Mordida" já vendeu mais de 500 mil exemplares em sua carreira. Já seu livro de estreia, "Tudo É Rio" (2014), foi parar na lista dos mais vendidos da Amazon em 2023.

Nesta sexta-feira (8), Carla Madeira terá uma sessão de autógrafos às 17h no Salão do Livro de Genebra. No sábado, ela participa do "Encontro Literário" na livraria Les Recyclables, da mesma cidade. A escritora é a convidada de honra da editora Helvetia.

Eis os principais trechos da entrevista:

Chade - Quando a literatura apareceu em tua vida?

Carla Madeira - De profissão, eu sou publicitária, numa agência bastante relevante e que tem 37 anos. Ao longo da vida, a arte sempre foi muito presente. Eu pintava, compunha, tocava violão. Eu fui para a matemática, mas sentia muita falta da música, da arte. Foi quando eu decidi ir para Comunicações, justamente para trabalhar com a escrita, com filmes. E a publicidade exige muito o domínio dessas linguagens. Mas não é arte.

Sentia falta desse espaço de subjetividade. Eu já tinha sido professora de redação publicitária na universidade, então eu já tinha uma relação com a escrita muito próxima. E comecei a escrever muito despretensiosamente. Não foi uma decisão; vou escrever um livro. Foi uma decisão muito mais para tentar dar vazão para uma prosódia, para exercitar essa subjetividade, que fosse algo autoral. E, então, comecei a fazer o que seria "Tudo É Rio". Inicialmente eu não sabia que seria um conto, uma brincadeira de linguagem. Mas a coisa foi me fisgando.

Você começa a escrever, mas, depois de uma primeira cena, você para por 14 anos. O que ocorreu?

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Quando eu comecei a escrever "Tudo É Rio", a história era outra. Não começa onde hoje ele começa. Era a história de Francisca e havia uma longa história sobre as Marias. Eu precisava afastar disso para retomar o tema depois. E comecei a escrever a história de Lucy. Escrevi a cena do Venâncio com o filho. Uma cena brutal e muito violenta. Por uma cena de ciúmes, ele pega o menino que estava sendo amamentado e joga longe. Quando escrevi isso, eu interrompi o processo e não consegui avançar. Eu não tinha recursos para lidar com aquilo, nem de vivência, nem de imaginação. Na época, não tinha filhos, estava pensando em engravidar e me assustei. Parei de escrever por 14 anos. Sempre pensava e anotava coisas. Mas não tinha coragem de voltar realmente.

O que há de universal nos teus livros?

É uma investigação sobre esse primeiro lugar que experimentamos no mundo, que é a família, e que de alguma maneira é nossa primeira noção civilizatória. É o primeiro olhar que temos e enquadramento do mundo. De como vamos equilibrar as nossas potências de bem e de seu contrário. Vejo que é isso que tem trazido força para minha literatura. Como somos constituídos, por qual motivo somos capazes de um ato? Por qual motivo algumas pessoas são capazes de coisas terríveis? Que circunstâncias são essas? Todos os meus livros são atravessados por essas questões?

O perdão também percorre o debate em relação aos teus livros

O perdão entra em "Tudo É Rio" como uma discussão que a camada jurídica não esgota. Diante de uma situação brutal e criminosa, você pode fazer o encaminhamento jurídico. Mas ele não da conta de todas as camadas que uma situação de violência perfura. O perdão, portanto, é uma dimensão fundamental para a pessoa agredida conseguir sair da paralisia e da mão do agressor. Meus livros tocam nessa questão.

Em "Véspera", a cena inicial é uma mãe que está esgotada. Ela perde a paciência. Larga o menino na rua. Dois minutos depois, ela se arrepende. Volta para buscar e ele não está lá mais. E aí? O que fazemos com isso?

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Vivemos hoje, nas redes sociais, um permanente ambiente de julgamento, de condenação e cancelamento. A literatura é uma opção de resposta a isso tudo?

A literatura é uma ocasião de você experimentar a possibilidade de se colocar no lugar do outro. Mesmo que aquele outro seja alguém que você discorda, abomina. É uma ocasião para você dizer: isso é terrível ou isso eu entendo. É uma oportunidade para trazer para a mesa essas questões da condição humana. A nossa imperfeição, o nosso espaço de manobra. Onde podemos nos refazer, nos rever. A literatura é essa oportunidade.

"Tudo É Rio" tem polêmicas. Tem gente que diz que não concorda com o perdão. E está tudo certo. A questão não é concordar ou não. É ocasião para que aguentar e perceber o movimento do outro.

E como o autor vive em sua relação com as redes sociais?

Ele precisa ter muita adesão ao que ele quer dizer e deixar esse mundo do lado de fora em seu processo criativo. Por mais que isso incomode, eu quero tocar nesses pontos. Quero fazer um giro de 360 graus neste desconforto. Para o autor conseguir fazer isso, tem de virar as costas para as redes sociais e, na sua decisão de bancar.

Como faz para deixar isso de fora?

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Em "Tudo É Rio", eu não tinha essa noção do alcance que a coisa tomaria. Eu estava no meu território e faria o que quisesse. Nos outros livros, já com as ressonância de "Tudo É Rio", eu me surpreendi com minha capacidade e desejo de fazer o que eu queria fazer e correr riscos. Eu consegui me proteger.

Vivemos no Brasil um cenário de ampla difusão de desinformação. A arte e a literatura têm um papel nesse mundo em que está ameaçado de não saber o que é real e o que não é real?

Tenho medo de dar um papel utilitário para a arte. A arte não pode cair nessa. É importante que a arte continue sendo um espaço de liberdade das pessoas, do artista. E, ao usar esse espaço para lidar com suas questões, vamos construindo esse painel do humano. Isso vai construindo uma painel das questões da humanidade. Não é uma coisa feita para ser útil, mas que é absolutamente necessária por ser o espaço genuíno de cada um de encaminhar suas questões, sua loucura, sua experimentação, seus riscos, seu lado escuro, suas angústias. Por isso a arte puxa o mundo.

O que o contexto brasileiro te influencia em teus personagens e na tua escrita?

Vivi muito as questões do interior de Minas. Há o aspecto religioso que obviamente não é só brasileiro, mas que está fortemente aqui. Dessas tantas possibilidades de Deus. Um Deus que cada um sente dono, que cria, coloca as regras. O quanto que isso tem de violento, mas o tanto que isso tem de possibilidade de humanização e empatia. Não busco trazer respostas para isso. Mas trazer essas possibilidades. Como a religião pode ser objeto de dominação e violência. Mas como também permite ser uma força que nos une e humaniza.

Em "Tudo É Rio", algo que foi muito forte é a sexualidade feminina, que é tão interditada. Desconstruiu o modelo. Desorganizar esse pensamento de como deve ser a sexualidade feminina para ela ser aceita.

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Você acha que é irreversível essa desconstrução? Vemos grupos políticos justamente com bandeiras contrárias e até usando isso como uma ameaça, como a extrema direita.

Eu acho que estamos já com várias camadas de ampliação comportamental que já são irreversíveis. Pode estar mais lenta em alguns lugares, mas não tem volta. Acho que essa onda conservadora é o último grito, o último espasmo, a última tentativa de querer segurar isso. De dizer se você pode casar com alguém do mesmo sexo. Isso não cabe mais. Mas elas vão espernear, por ter eco ainda em muitas pessoas.

Há também a questão da violência de gênero, que é algo muito forte no Brasil.

E como os homens leem teus livros?

O público masculino está chegando com muita força. Tenho recebido muita mensagem. Há um espaço para reconhecer uma complexidade. Há um discurso que está na superfície e que não lida com uma ancestralidade de violência e que é perpetuada. É um problema maior que um problema dos homens. É uma questão do arranjo social que estamos fazendo e que gera isso, esse mundo e essas pessoas.

Como os anos Bolsonaro afetaram a arte no Brasil e até a alma do povo?

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Há uma ideia de que existem as pessoas boas e as pessoas más. Se essa é a base e se eu sou o bom, eu posso te destruir. Posso te queimar na fogueira, posso te torturar. Eu sou o bom. Isso é um raciocínio absurdo que não compreende que não existe esse lugar: eu sou o bom. Esse equilíbrio dos dois lados é algo construído, da educação, do respeito. Passa por outras questões. Mas esse discurso cola. Vejo pessoas boas que estão mordendo essa isca. É muito perturbador. É isso que estamos assistindo com perplexidade.

Vimos nos últimos dias a censura contra o livro de Jeferson Tenório. Qual tua avaliação?

Fico perplexa que diante de um livro como "O avesso da pele", sensível, potente como ocasião para se discutir o racismo e sua inaceitável violência, o que reste em uma suposta "educadora" seja a indignação com frases vulgares e vida sexual absolutamente contextualizadas no livro. É preocupante que uma educadora não perceba onde está o mal no livro e não agarre a oportunidade de trabalhá-lo na formação dos nossos jovens.

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